Ilustração por Karina Freitas

Se o Livro do desassossego é um projeto inacabado, uma espécie de quebra-cabeça que pode ser montado de infinitas maneiras e que a cada combinação forma uma imagem distinta, porque não possibilitar que o leitor também construa seu próprio livro? A partir dessa pergunta um grupo de investigadores de Coimbra, Portugal, colocou em marcha a criação de uma plataforma digital que permitirá, além da comparação das diversa edições do L.do.D, que ele seja editado virtualmente a partir de escolhas que apresentará. Manuel Portela, coordenador desse trabalho na Universidade de Coimbra, conversou com o Pernambucoe explicou em que consiste o projeto.

 

Poderia explicar com mais detalhes qual o objetivo desse trabalho?

Trata-se de mostrar materialmente e conceitualmente o L.do.D enquanto projeto: projeto do autor, projeto dos sucessivos editores e projeto dos leitores. Através das múltiplas configurações, os leitores poderão estudar o processo genético de composição escrita e o processo bibliográfico de seleção, edição e organização dos fragmentos pelos diversos editores. Poderão ainda produzir versões próprias do Livro. Como os textos e os ficheiros (arquivos) estarão marcados a diferentes escalas, as reconfigurações automáticas podem ocorrer nessas diferentes escalas. O objetivo é usar o processamento algorítmico para compreender a dinâmica dos atos de escrever e editar no processo social de construção do L.do.D.

 

Como surgiu a ideia? Quantas pessoas estão envolvidas?

A ideia tem mais de uma década e surgiu no contexto da minha investigação sobre o hipertexto como dispositivo de fragmentação do livro. O projeto tem duas componentes: uma componente textual e informática — de representação genética dos manuscritos e datiloscritos autorais e também de representação da construção do livro pelos diversos editores; e uma componente teórica — de reflexão sobre a relação entre os processos de escrita e os processos bibliográficos, isto é, os processos de criação conceitual e material do livro. Nas duas componentes do projeto estão envolvidas 13 pessoas. A publicação está prevista para 2015, mas esperamos ter uma pré-publicação experimental que possa ser testada nas suas funcionalidades a partir do último trimestre de 2014.

 

Por que o Livro do desassossego? Por ser um livro aberto é a obra ideal para esse tipo de experiência?

Sim, de certo modo, o Livro do desassossego é obra ideal para esta experiência. Por um lado, mostra-nos em alto grau a capacidade sempre surpreendente de Fernando Pessoa se entregar ao processo de escrita e de escrever o que nunca foi escrito. Quer dizer que é uma daquelas obras em que vemos a máquina literária em pleno funcionamento, com o máximo de imaginação e de sentimento. Por outro lado, é um livro em construção, em projeto, que nos permite observar a processualidade que transforma a escrita em livro.

 

Toda a história por trás do Livro é fascinante, não é? Um livro que ainda hoje é um enigma, cheio de possibilidades... Podemos arriscar que dentro de 100 anos ele continuará sendo estudado, que ainda estaremos tentando decifrá-lo?

Sim, é uma história fascinante. Mas o enigma do L.do.D, o enigma que fará com que continue a ser estudado e admirado daqui a mais 100 anos, é sobretudo o enigma da própria escrita, que nos faz perguntar: como foi possível escrever isto? Pensar isto? Ser isto?