Contista, Alice Munro não tem pressa. Já que consiste um clichê sem tamanho a máxima de que o conto deve vencer o leitor por nocaute; a escritora canadense nos conforta ao lembrar que regras até se aplicam, mas são desnecessárias, coitadas, em termos de arte. Então, por que não um conto vagaroso, um poema que dê de ombros para a concisão da palavra ideal ou um romance descrente de tarefa de abocanhar um universo inteiro? Foram algumas perguntas que me fiz, há alguns anos, quando me deparei com as histórias arrastadas de Felicidade demais — obra que me fisgou já pelo título, com sua coragem de igualar a felicidade ao enfado de tudo aquilo que se excede ou que se excede ainda que pela ausência.
Alice Munro não só tem pouca pressa. Também escreve tal e qual uma infecção silenciosa, que vai ocupando um corpo inteiro, prolongando a aparição dos sintomas iniciais. Uma doença que ganha tempo para não perder a vítima. Em seus textos, são raras as imagens retumbantes ou os planos abertos.
Observe os primeiros parágrafos de “Dimensões”, narrativa que abre Felicidade demais:
“Dore teve que pegar três ônibus — um para Kincardine, onde esperou o que ia para Londres, onde esperou um de linha que a levou ao local. Começara a viagem num domingo às nove da manhã. Devido aos períodos de espera entre os ônibus, levou quase até as duas da tarde para percorrer aqueles pouco mais de cento e sessenta quilômetros. Todo aquele tempo sentada, tanto no ônibus quanto nas estações, não era algo que a incomodasse. Sua jornada de trabalho não era nada sedentária”.
A partir desse início em pequena angular, começamos a entrar em contato com a jornada de trabalho nada sedentária da personagem, que é antes de tudo uma estratégia de fuga: precisa fazer muito, o tempo inteiro, para não precisar pensar, para desabar para dentro do sono sem madrugadas de barulhento silêncio. Mas os detalhes do seu incômodo aparecem aos poucos. A infecção está apenas no começo. São muitas páginas até que os sintomas da derrocada de Dore comecem a emergir.
Dore é uma camareira de hotel assombrada por palavras: as cartas que recebe do marido na prisão, tentando explicar que estrangulara seus três filhos não por um acesso de loucura; pelo contrário: por uma Convicção com maiúsculas de que essa era a única coisa a ser feita.
Encurralada por palavras absurdas, em determinada altura, Dore se envergonha das suas próprias palavras e acaba confessando: “Eu sei que essas palavras já estão mortas de tão gastas. Mas continuam verdadeiras”. No fundo, todas as palavras estão mortas de gastas há tempos. No entanto, é do esforço de ressuscitar o sentido do óbvio que é feita a literatura de Alice Munro. De vidas gastas e secas são extraídas as grandes interjeições.
Quando Alice Munro foi anunciada vencedora do Prêmio Nobel de Literatura, muito se falou do fato de termos uma contista, enfim, sentada no topo do mundo literário. Mas o que me chamou atenção foi outro detalhe: a vitória para uma prosa contida, sem (aparentemente) grandes inovações, sem bandeiras políticas ostensivas; apenas munida da crueldade com que observa seus personagens entrarem em estado de putrefação. Diante disso, talvez outra escritora canadense fosse bem mais interessante para o Nobel, Margaret Atwood, essa sim detentora de uma literatura exuberante e cheia de sinuosidades. Alice Munro é, há décadas, uma observadora estática diante do mesmo ponto.
Num artigo publicado no Guardian sobre a conterrânea, Margaret Atwood escreveu que nos anos 1940 e 1950 era quase impossível pensarmos numa escritora canadense. E mais: numa canadense bem-sucedida. As duas constituem vozes de exceção, ainda que distintas. Se Margaret Atwood se interessou na investigação até mesmo da ficção-científica; Alice Munro preferiu o assombroso de olhar o banal e encontrar nele algum tipo de Graça (no sentido religioso e de alumbramento do termo).
“No trabalho de Munro, emoções irrompem. Preconceitos são lançados por terra. Surpresas proliferam. O insólito toma conta. Atos maliciosos acabam tendo consequências positivas. A salvação chega quando é menos esperada, e das formas menos peculiares”, escreveu Atwood.
VOYEUR DA MORTE
É curiosa certa proximidade da canadense com outro nome sempre levado em conta na corrida pelo Nobel, o norte-americano Philip Roth. Em ambos, o foco de interesse parece ser o desejo de colocar uma lupa na degradação física e moral (ambas, em geral, ocorrendo de forma paralela). Roth, em seus últimos livros, tem se dedicado a investigar os (usaremos um termo mais ameno) “inconvenientes” da velhice, como se estivesse descrevendo a si próprio, contando para os leitores o que encontra a cada dia no espelho. Sua obra se tornou o olhar assustado sobre si próprio.
No entanto há uma diferença crucial entre os dois na forma de colocar a velhice no centro da investigação literária: Alice Munro jamais passa a impressão de que esteja falando dela própria ou de alguém em particular. É como se o tema da sua narrativa fosse já tão de “domínio público” que particularizá-lo soaria de uma redundância arrasadora. Sua velhice é substantivo comum, é substrato de anonimato.
Mais que um susto, na verdade, a velhice é um ritual qualquer do cotidiano, tal e qual frequentar o culto, reencontrar os de sempre, perder e renovar pessoas ou despertar e anoitecer. Como seus personagens vivem existências diminutas, banais, as fases da vida merecem rituais, porque não há nada fora dela, não há nada fora do que já existe.
Um dos contos de Querida vida, que a Companhia das Letras lança este mês (a tradução ficou por conta de Caetano Galindo, que traduziu o Ulisses, do Joyce), a morte física é colocada no foco da trama, já em seus últimos momentos, amortecendo e aniquilando tudo o que o leitor acompanhara nas páginas anteriores. Só ao final do texto é que descobrimos que ele trata do ritual de uma criança a caminho de ver seu primeiro morto. No caso, sua babá, uma personagem de vida fora dos padrões da rígida sociedade em que Alice Munro faz sempre questão de ilhar seus personagens.
Como se trata da importância de uma visão — e não necessariamente da importância da vida pregressa dos envolvidos —, o conto é batizado apenas com o solitário e carnal substantivo O olho, título que parece enfatizar o clímax do primeiro encontro de alguém com a morte para além de qualquer metáfora amortecedora:
“ Tinha um caixão na sala o tempo todo mas eu estava achando que era outra coisa. Por causa da minha falta de experiência eu não sabia exatamente a cara de uma coisa dessas. Uma prateleira de acomodar flores, aquele objeto de que a gente estava se aproximando podia ser, ou um piano fechado.
Talvez as pessoas que estavam em volta tivessem dado algum jeito de disfarçar o tamanho e o formato e a função real daquilo. Mas agora as pessoas estavam respeitosamente abrindo caminho e minha mãe falou com uma nova voz, muito baixinha.
‘Agora, vem’ ela me disse. A delicadeza dela me soou odiosa, triunfante.
Ela se abaixou para olhar meu rosto, e isso, eu tinha certeza, era para evitar que eu fizesse exatamente o que tinha acabado de me ocorrer — ficar com os olhos bem apertados. Aí ela desviou o olhar de mim mas ficou com minha mão bem presa na sua. Eu acabei conseguindo baixar as pálpebras assim que ela tirou os olhos de mim, mas não fechei até o fim por medo de tropeçar ou de que alguém me empurrasse bem para onde eu não queria ir. Pude ver só um borrão das flores rígidas e o brilho da madeira envernizada.”
Quando a criança olha bem aquilo que se encontra dentro do caixão, tentando encontrar algum vestígio da babá que um dia conhecera, que um dia estivera ao seu lado, Alice Munro nos infecciona pela derradeira vez, mas não com o espanto fantasmagórico que poderia emergir de um corpo cercado de flores num caixão. Mas pelo que separa e racha ao meio os que estão aqui dos que já foram ou dos que precisam ir, desesperadamente ir:
“Alguma coisa se mexeu. Eu vi, a pálpebra dela que estava do meu lado mexeu. Não estava abrindo ou abrindo pela metade, nada assim, mas erguendo só um nadinha como que para permitir, se você fosse ela, se você estivesse lá dentro dela, que você conseguisse enxergar por entre os cílios. Só para distinguir talvez o que era claro lá fora e o que era escuro.
Eu não fiquei surpresa na hora e nem um pouco assustada. Imediatamente, essa visão se encaixou em tudo que eu sabia da Sadie e de alguma maneira, também, no que quer que a experiência me reservasse de especial.”
A minha Alice Munro mais assustadora, no entanto, é justamente a das histórias de O amor de uma boa mulher, título que poderia soar como uma ironia, mas que, no decorrer da leitura, percebemos o quanto ele guarda apenas o que suas palavras guardam: o amor pode ser bom; a vida é que não sabe o que fazer com ele. O amor de uma boa mulher é um livro assustador, pois um livro de constatações irremediáveis: uma idosa percebe a degradação que os anos trouxeram ao seu corpo, um casal se depara com a vertiginosa perda de interesse sexual... Olhar e perceber a decadência consiste, na verdade, na grande trama de horror que um autor pode contar. Mas para nos convencer a abrir os olhos, é preciso calma. Paciência. E até alguma sedução. Por isso repito: Alice Munro não tem pressa alguma.