Arte de Janio Santos sobre foto de Rafael Dabul/Divulgação

 

Escritores erguem cidades, esquadrinham seus moradores, refazem sua geografia, criam lendas e estereótipos. Até pouco tempo, Curitiba era para mim o cenário de um conto de Dalton Trevisan, cidade ensimesmada, desconfiada, com pessoas que se despediam sempre lançando mão de um ameaçador “cuide-se”. Mas cuide-se de quê? Só podia ser do Dalton, é claro. Era assim o meu clichê curitibano, após anos e anos de devoção à obra do Vampiro. Em certa medida, precisei abandonar seus livros para enxergar a capital paranaense para além das minhas fantasias lúgubres de leitor. Feche o livro e olhe a cidade, foi o que fiz.

 

Dalton deixado em repouso por um tempo, Curitiba começou a ganhar novos contornos para mim graças às crônicas do jornalista Luís Henrique Pellanda, reunidas em Nós passaremos em branco, lançado em 2011. O livro trazia o relato de um homem que cruzava diariamente o centro da capital, muitas vezes no percurso de levar e buscar a filha no colégio, encontrando pelo caminho personagens marginalizados ou simplesmente perdidos ou mesmo à procura de alguma perdição. O narrador criado por Pellanda humanizava Curitiba, na medida em que revelava um cenário urbano livre do imaginário de ordem & progresso por um lado, além de sanitizar as lembranças vampirescas, por outro. Nas narrativas de Pellanda, a cidade permanece na sua vocação de personagem literário, porém não é mais a protagonista como antes. Tem voz; mas muitas vezes se mantêm em silêncio.

 

O narrador de Nós passaremos em branco retorna agora em Asa de sereia, título em forma de oxímoro, que forra uma Curitiba desta vez repleta de falsas aparências, de frágeis primeiras impressões. Nas ruas por onde trafega insistentemente o narrador, como Osório e Santos Dummont, ou na Praça Tiradentes, nada é o que parece.

 

Em Asa de sereia, os passeios do narrador parecem ter se tornado mais conscientes, mas não apenas da sua condição de voyeur da urbe; também da necessidade em nos narrar a vida de todos aqueles ao seu lado na cidade. O Pellanda cronista é um delator. Mas um delator obcecado em olhar seus personagens a partir de uma lente de aumento, por onde tudo parece mais grave, mais dolorido. É o caso da crônicaPasseio na geada, em que uma das constantes da capital paranaense é colocada em discussão:

 

“Não me peçam para falar dela, me faz mal. É como sonhar com um defunto e achá-lo bonito. Um prazer ambíguo, que nunca termina bem. Afinal, nada mais triste do que come­çar o dia desperdiçando um desejo. A geada, vocês sabem, é boa nesses truques de decepcionar o coração. Tem o des­caramento de embelezar aquilo que mata. É uma mágica inútil, mas dizem que a arte também é.”

 

Asa de sereia traz uma dicção que renova não apenas a cidade que aceitou como personagem e cenário; mas a própria escola da crônica brasileira.

 

Leia texto de Luis Henrique Pellanda na contracapa do Pernambuco.