Na primeira vez que viu Juan Domingo Perón, Evita, sua futura esposa, ficou tão encantada que se aproximou, estendeu-lhe a mão, e disse: “General, Gracias por existir.”
Essa cena e a frase que a acompanha fazem parte da ficção do argentino Tomás Eloy Martínez (1934-2010), mas seu relato é tão bem construído e convincente que acabou por ser adotada como verdadeira por muitos em seu país e fora dele. O autor de Santa Evita (1995) — romance mais traduzido da história da literatura argentina — foi mestre em navegar entre a realidade e a ficção. Com sua criação contestou e subverteu a história oficial; com sua fantasia, encantou e hipnotizou milhares de leitores: “A literatura é só um jogo entre a verdade e a mentira, e o importante não é o que é verdade ou mentira, é o jogo”, pregava.
Poucos souberam manejar tão bem e ir tão profundo na arte de ilusão como ele. Para mentir é preciso saber tudo, dizia o jornalista e escritor. Mentia tão bem que era capaz de mudar a história, transforma-la, transfigura-la – palavra que gostava de usar para descrever o trabalho que fazia. Certa vez um museu dedicado à memoria de Perón foi criado na Argentina. Para espanto de Tomás Eloy, a frase acima citada apareceu gravada em destaque em uma das paredes do lugar. O escritor então escreveu ao diretor do memorial para explicar que aquilo era uma criação sua, que nunca havia acontecido no “mundo real”, mas recebeu uma resposta rotunda e bastante emblemática: Quem é o senhor pensa que é para contestar um fato histórico? “Cansei de desmentir que Evita nunca disse isso a Perón”, contou Tomás Eloy Martínez (TEM) em algumas ocasiões. A imagem da Evita que hoje em dia está presente no imaginário popular é muito mais próxima à personagem da ficção do escritor argentino do que a dos livros de história; o Juan Domingo Perón que entra para a posteridade também tem mais do homem retratado por Tomás Eloy em seus romances do que da imagem que o próprio general quis perpetuar. TEM costumava dizer que à diferença do jornalista, o romancista tem “licença para mentir”. Ele, como poucos, soube fazer isso de maneira magistral. Mentia tão bem que enganava — e maravilhava — a todos. “A única obrigação do escritor é engendrar uma verdade que tenha valor por si mesma, que seja sentida como verdadeira pelo leitor”, escreveu.
Aos 75 anos, após uma batalha dura e longa contra o câncer, o autor de O romance de Perón (1985) morreu em Buenos Aires, cidade pela qual tinha enorme amor, embora, por conta do exílio (e depois do trabalho), viveu afastado por décadas. Ao recordar o amigo, o escritor nicaraguense Sérgio Ramirez assim o definiu: “Tomás Eloy dinamitou a história, a desafiou e a venceu”. O parceiro de projetos Gabriel García Márquez foi ainda mais rotundo: “Era o melhor de todos nós”.
Agora, pouco mais de três anos após sua morte, a fundação Tomás Eloy Martínez, sediada na capital argentina, concluiu um projeto que permite a pesquisadores, jornalistas e leitores mergulhar nos documentos deixados pelo escritor. “Começamos o trabalho em março do ano passado e terminamos em fevereiro deste ano, mas na verdade não está tudo concluído. Ainda falta catalogar alguns arquivos do computador do Tomás Eloy e, em especial, o material da universidade de Rutgers [Estados Unidos] que ele utilizava para dar aulas. O grosso do trabalho, no entanto, está feito”, conta a jornalista Ana Prieto, responsável por coordenar a organização desse material. O arquivo que a fundação agora disponibiliza ao público — sob prévia solicitação — é rico, vasto e surpreendente. Engloba não só sua veia literária (manuscritos e versões de novelas, contos e poesias, com todo o material de pesquisa que os envolvia), como sua faceta jornalística. Os documentos recuperados e organizados abarcam esses seus dois ofícios, que sempre andaram de mãos dadas: seus textos jornalísticos tinham a qualidade e a maneira de narrar próprias da literatura, e seus trabalhos literários eram construídos com ferramentas do jornalismo, o que os faziam ainda mais críveis.
Em 1975, depois de sofrer ameaças da extrema-direita argentina que um ano depois chegaria ao poder, TEM exilou-se em Caracas. Durante quase uma década viveu de seus trabalhos jornalísticos. Todo esse raro material produzido nesses anos está agora disponível para consulta no arquivo, assim como as crônicas e artigos escritos antes e depois desse período. Estão também cartas que o escritor intercambiou com amigos do mundo da literatura e do jornalismo, gravações de entrevistas célebres que fez (como a conversa com Perón, em 1970, quando o general preparava-se para voltar ao país após anos de exílio em Madri) e um arsenal de entrevistas concedidas durante toda sua vida. “Na minha opinião, as entrevistas são um dos pontos altos do arquivo, porque neles ele reflete sobre sua própria obra e sobre distintos fatos políticos e sociais latino-americanos. É um recurso muito valioso para avistar como ele concebia sua obra e a realidade que o rodeava, e como se situava dentro delas”, acrescenta Prieto. Para a pesquisadora e professora de literatura Griselda Zuffi, o escritor argentino foi vítima do seu próprio talento como jornalista. “Sobretudo na Argentina, a imagem de jornalista e o fato de ter sido uma figura relacionada com os meios, eclipsa seu valor como escritor. Tomás, a meu modo de ver, foi um escritor que trabalhou como jornalista para manter sua família”, aponta a acadêmica. Zuffi, que conviveu de perto com Tomás Eloy, diz que a criação da fundação (o que aconteceu em 2011) e a divulgação do arquivo era um sonho do escritor. “Era um desejo dele criar um lugar onde se promovesse sua obra, onde fosse possível gerar novas leituras e que essas leituras gerassem olhares críticos e novas narrações. Tomás amava a literatura, era vital para ele, creio que salvou-lhe a vida.”
Depois de tantos anos seduzindo e “criando verdades” com seus relatos, Tomás Eloy tem agora revelado seu método de criação. Graças a um pedido seu e ao trabalho de seus herdeiros, nos é permitido conhecer por dentro a engenharia por trás de suas obras. “Em todos os meus livros, não apenas em Santa Evita, a narração se move numa delgada linha que está entre a imaginação e a realidade. Não poderia dizer se isso é uma marca de estilo pessoal ou é a linguagem com que vivo e com a qual cresci. Essa é minha voz, não tenho outra.” Que era sua voz, já se sabia; agora há mais material para estudá-la, analisá-la e, quem sabe, descobrir o segredo do seu encanto.
Cuidado extremo com a pesquisa
Entrar na “cozinha” literária de TEM permite confirmar algo que é deduzível da leitura de seus textos: o extremo cuidado que tinha para construir suas personagens, fossem elas figuras históricas ou puras criações. “Ele sempre insistiu que seus romances eram ficção, não divulgação histórica, nem romance histórico, senão pura e simplesmente ficção. Se isso é certo, ao mesmo tempo ele se introduzia profundamente na realidade e na história para escreve-las. Aconteceu com todas os romances”, conta Prieto, e acrescenta: “Nos arquivos de pesquisa de Purgatório (2008) há até mapas de estradas, e para o romance El Olimpo (inacabado) há vários áudios de entrevistas com pessoas que estiveram presas em campos de concentração durante a última ditadura militar argentina”. Para a jornalista, os arquivos permitem entender as escolhas feitas pelo escritor ao construir seus textos. “É possível comprovar como Tomás passou longas jornadas escrevendo e corrigindo capítulos que em seguida seriam rechaçados. E assim, é possível perceber que para recusar algo, primeiro Tomás teve que trabalhar nisso profundamente”. O curioso é que as múltiplas versões que produzia não eram jogadas fora ou apagadas, mas sim guardadas. São registros do minucioso trabalho que empreendia. Como os esboços (estudos) de Picasso para pintar seu célebre Guernica, demonstram ao mesmo tempo a genialidade e a dedicação do criador. Por sorte essas testemunhas do processo de construção foram preservadas e hoje servem para ajudar a entender melhor sua obra.
Uma das particularidades dos arquivos agora disponibilizados para consulta são os inéditos que nunca virão à luz como obra do autor: textos, capítulos de livros e até mesmo um livro inteiro (intitulado Mujer de la vida) que Tomás Eloy decidiu não publicar — dizia que o romance tinha “nascido morto”. Trata-se da vida de uma jovem polonesa que cai nas redes da prostituição internacional; sua história se enlaça com a história da Argentina. Outro documento de destaque é o manuscrito de El Olimpo, romance que o escritor não teve tempo de terminar devido ao câncer. Ezequiel Martínez, filho do escritor e diretor da fundação que administra seu legado, ainda tem dúvidas se publica ou não esse relato, já que o pai não deixou qualquer ordem sobre o que fazer com ele. Por enquanto esse material fica a disposição de pesquisadores, jornalistas e leitores para consulta na fundação.
As lembranças que deixamos
Em Purgatório, Tomás Eloy aborda a questão das coisas que podiam ter sido e não foram. Questiona sobre as enormes possibilidades da vida que não chegaram a se concretizar: os livros que não foram escritos, as histórias de amor que não puderam acontecer, o tempo que um exilado não pôde viver em seu país, “as sinfonias de Mozart que sua morte prematura apagou e as melodias que John Lennon levava na cabeça quando o assassinaram.” Em dado momento, o narrador sentencia: “Os romances são escritos para reparar no mundo a ausência perpétua do que nunca existiu”. Recuperar o que não existiu é vencer a morte, dizia Tomás Eloy. “Um ser que existiu persiste através da memória. Por isso, o livro (Purgatório) insiste em que a identidade de cada um de nós está nas lembranças. Não só nas lembranças que temos senão nas lembranças que deixamos”, declarou em uma entrevista.
Graças a generosidade da fundação TEM, tive acesso ao material produzido pelo escritor para a construção de Purgatório. São entrevistas com conhecidos, médicos e psicólogos com a finalidade de construir as personagens. Também há anotações de sonhos seus que aparecem no relato, assim como notas que tomava em seu Moleskine: estrutura dos capítulos, possíveis finais e ideias soltas — que logo apareceram, ou não, na versão final. Estão também várias versões dos mesmos capítulos em que se pode acompanhar a evolução das personagens, os rumos da história e, de um modo geral, a construção da trama. Há ainda e-mail que trocou com tradutores e amigos onde revela alguns de seus objetivos ao escrever esse livro. “Tentei intensificar o efeito de realidade que tinha provado em Santa Evita, mas ainda não sei como isso atuará para os que não sabem que vivo em Highland Park [lugar onde parte da trama acontece] e nem têm como saber que minha doença é verdadeira”, apontou em uma dessas mensagens.
Enquanto escrevia esse romance, Tomás Eloy teve detectado um câncer. Passou por várias cirurgias — situação que deixou transparecer no livro já que o narrador, uma espécie de alter ego seu (ou gêmeo, como preferiu nomear), também padece de uma doença — e temeu não terminar o relato. “O desejo de escrever era o motor que o ajudava a seguir vivo”, conta Ezequiel Martínez, quem acompanhou de perto essa luta para finalizar o romance. Mesmo muito debilitado e com dificuldade de locomoção e de fala, o escritor produziu até os últimos dias de sua vida; e esteve lúcido até o final. “Há um tempo sinto que a morte está perto. Sinto, sem medo e com a esperança de morrer como sempre escrevi, com os olhos abertos. Sinto curiosidade por ver o outro lado ainda que francamente não creio que haja nada. O que fica de mim e ficará é o que eu fiz, o amor que tive por vocês e a melancolia de não poder estar mais tempo juntos”, escreveu dias antes de morrer numa carta dirigida aos filhos.