O alemão RüdigerBilden é citado 15 vezes em Gilberto Freyre – Uma biografia cultural(2007), livro de Enrique Rodríguez Larreta e Gullermo Giucci. O livro propõe reconstruir a rede densa dos círculos sociais e ideológicos que marcaram a formação de Freyre, mas, em nenhum desses 15 momentos, Bilden, um alemão autoexilado nos Estados Unidos, surge com a importância que ganha no recém-lançado O triunfo do fracasso – Rüdiger Bilden, o amigo esquecido de Gilberto Freyre, da também biógrafa do pernambucano Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Bilden, segundo a professora da Universidade de São Paulo, seria um dos principais formadores intelectuais de Freyre, figura de quem ideias originais sobre a influência da escravidão na sociedade brasileira, o pernambucano teria se apropriado e esvaziado sob um estilo encantador. A genialidade da escrita e a rapidez de publicação de Freyre teriam colaborado para arrefecer o ímpeto de Bilden, que morreu sem publicar sua investigação sobre o Brasil. Além de tudo, de acordo com Pallares-Burke, Freyre teria desejado o esquecimento de Bilden, alterando ou apagando trechos elogiosos ao alemão de textos de seus “verdes anos”.
O livro sobre Rüdiger Bilden faz parte do mesmo projeto do qual emergiu Gilberto Freyre, um vitoriano dos trópicos (2005), no qual a autora busca recuperar a complexa e intricada rede de relações pessoais e de ideias que está por trás do surgimento de novas e importantes tendências culturais. No novo título, contudo, Freyre ocupa um lugar mais marginal. De acordo com a pesquisadora, ao estudar a trajetória de Freyre, tentando refazer o percurso rico e atribulado que o levou a se tornar o “re-inventor” do Brasil, ficara evidente que o antropólogo Roquette Pinto e seu colega da Columbia University, Bilden, haviam tido um papel de grande importância no processo de liberação dos preconceitos contra a população negra e mestiça que o jovem Freyre compartilhava com a elite do país.
“Foram eles os interlocutores mais próximos que teriam dado uma contribuição fundamental para que Freyre, retomando os ensinamentos do antropólogo Franz Boas e dos espíritos mais lúcidos da época, percebesse a falta de fundamentação científica da tese da degeneração dos mestiços, abandonasse a simpatia que tinha pelos ideólogos racistas e líderes políticos norte-americanos que lutavam por uma ‘democracia branca’ e desenvolvesse brilhantemente suas ideias sobre o valor da miscigenação cultural e racial como marca equilibradora distintiva da cultura brasileira”, afirma Pallares-Burke em entrevista ao Pernambuco.
“O que fiz no O triunfo do fracasso”, continua a biógrafa, “foi desenvolver o que já anunciara na biografia de Freyre, dando proeminência a Bilden e acompanhando-o numa trajetória que se revelou atribulada, dramática e repleta de obstáculos, especialmente devido à histeria antigermânica que tomou conta de seu país de adoção durante e entre as duas grandes guerras; mas que, não obstante tudo isso, foi marcada por iniciativas louváveis que foram muito além da contribuição que ele que deu a Freyre e outros intelectuais de quem foi um importante interlocutor”.
A autora explica que quando pesquisava para a biografia de Freyre, publicada em 2005, tomou conhecimento de documentos que revelavam Rüdiger Bilden como um jovem extremamente culto, brilhante e determinado que de repente parecia ter misteriosamente desaparecido. O momento crucial que teria descortinado as potencialidades de um trabalho sobre o Bilden aconteceu em 2003 ou 2004, segundo Pallares-Burke, quando deparou-se na Biblioteca Oliveira Lima (situada no porão da Catholic University of America em Washington) com o projeto detalhado que Bilden enviara para a Carnegie Foundation, com cópia para Oliveira Lima.
“Seu rico e surpreendente conteúdo intrigou-me e estimulou-me a pesquisar sua vida, levada pela ideia de que um indivíduo que tanto queria fazer diferença no mundo não poderia ter simplesmente se desintegrado sem deixar rastros. O episódio na biblioteca de Washington foi o início de outras descobertas. Como eu previra, encontrei evidências do muito que Bilden realizou, apesar de não ter publicado o livro pioneiro sobre o papel da escravidão, da miscibilidade e da monucultura latifundiária na cultura brasileira, que preparava desde o início dos anos 1920 – livro que pessoas da envergadura de Manoel de Oliveira Lima, após lerem partes do manuscrito, acreditavam que seria ‘o estudo definitivo da escravidão’, a partir do qual não só ‘toda a história brasileira teria de ser reescrita’, como os ‘muitos problemas vitais da vida social do Brasil’ moderno seriam devidamente tratados”, afirma Pallares-Burke.
Nas páginas dedicadas a Bilden no seu livro sobre Freyre, a biógrafa já apontara para o que retoma em O triunfo do fracasso: que, a crer nos documentos pesquisados e nos indícios que ficaram dessa obra pioneira que nunca veio à luz, muitas das ideias centrais de Bilden, tal como ele as apresentava desde o início de seu detalhado projeto – por exemplo, o contraste entre o sistema português de colonização e o anglo-saxão; a importância das tradições sociais, políticas e culturais portuguesas na herança colonial e no desenvolvimento do Brasil; a profunda influência da ‘escravidão doméstica’ na vida privada brasileira; enfim, a defesa finamente articulada e historicamente fundamentada da miscigenação e do hibridismo cultural brasileiros – estavam ausentes das preocupações do jovem Freyre, mas iriam reaparecer como abordagens inovadoras, centrais e magistralmente desenvolvidas na sua obra de 1933 e dali em diante.
“Não se pode saber com certeza como teria sido esse livro pioneiro de Bilden, mas, a levar em conta o projeto original e textos posteriores, é de se supor que teria um viés econômico e científico bastante acentuado, sendo, ao que tudo indica, muito mais rigorosa em termos acadêmicos do que a obra de Freyre. Por outro lado, diferentemente desta, seu livro não teria as amplas qualidades interdisciplinares, ensaísticas e literárias da obra de Freyre, que, aprofundando e ampliando com ‘insights poéticos’ o conhecimento sociológico, garantiram a este um lugar privilegiado na biografia do Brasil”, explica ainda Pallares-Burke.
Para a autora, no caso de Bilden, o contraste entre a grande inteligência, talento, devoção a causas nobres (como a luta contra a segregação racial norte-americana) e generosidade para com amigos, de um lado, e seu fracasso acadêmico e material, de outro, dramatiza ainda mais sua vida. “É muito revelador do reconhecimento do importante papel que Bilden teve na formação de seus amigos, o forte apelo que o historiador Francis Simkins fez a Freyre, em 1949, insistindo para que ajudasse o velho amigo em comum, com quem a vida tivera pouca complacência. ‘Deus bem sabe que Rüdiger ajudou a educar você e a mim e nós lhe devemos alguma coisa’”, registra Pallares-Burke.
Segundo Pallares-Burke, definir o fracasso não é tão simples como parece, assim com há várias dimensões do que se chama fracasso e sucesso na vida humana. “Como tem sido argumentado por estudiosos deste tema até há pouco negligenciado, é necessário legitimar o fracasso mesmo nas vidas de indivíduos aparentemente bem sucedidos, já que tanto o fracasso quanto o sucesso não definem ‘in totum’ uma identidade, mas fazem parte integrante, em algum modo e em algum grau, de toda a vida humana. Enfatizando a natureza fugaz tanto do sucesso quanto do fracasso, que podem ser efêmeros nas vidas de todos nós, estudiosos do tema têm também enfatizado a necessidade de distinguir entre fracassados e vencedores contemporâneos e póstumos, já que antigos vencedores, como Stalin, podem se tornar fracassados e, inversamente, antigos fracassados podem ser reabilitados, tais como os exemplos de Thomas Münzer na Alemanha Oriental e Tiradentes no Brasil bem ilustram”.
A autora afirma ainda que quis também chamar a atenção para o fato de que a visão triunfalista ou heroica da história, que relega os insucessos e os perdedores à ‘lata de lixo da história’ , para usar a frase memorável de Trotsky, é enganosa, pois perdedores coletivos e individuais, grandes e pequenos, são parte da história, logo seus papéis não podendo ser reduzidos à impotência e à inconsequência, já que contribuíram para dar forma ao futuro que se tornou nosso presente.
Pallares-Burke afirma ainda que de modo algum teve o objetivo de sugerir que Bilden foi um herói e Freyre um vilão. “Não só não acredito em total vilões ou heróis na história, mas como historiadora minha função não é entrar nos arquivos com julgamentos já prontos, mas recapturar a trama do passado a partir de evidências, por mais que estas possam, muitas vezes, nos desconcertar e chocar; e, diante delas, tentar entender o que ocorreu no passado a partir de seus próprios termos e não lhe impondo, anacronicamente, um padrão de pensamento e práticas alheias ao seu contexto. E devo confessar que para as biografias de Freyre e Bilden que escrevi, fui muito motivada pela lúcida visão que o próprio Freyre algumas vezes expôs lindamente: que uma biografia verdadeira, que ele qualificava de ‘à inglesa’, nada tinha a temer de documentos que pudessem revelar aspectos desabonadores do biografado. Pelo contrário”.
Em contraste com o que ele chamou de “biografia triunfal”, ou seja, aquela que só fala sobre o sucesso, a glória e as virtudes do seu objeto de estudo pois o que quer é retratar um “monumento” de mármore e não um homem, esclarece a autora, a “biografia à inglesa”, no entender de Freyre, não esconde os insucessos, os despeitos, os ressentimentos, os amores contrariados, os complexos e as fraquezas que dão ao biografado a marca de sua verdadeira humanidade. Como ele disse, “pelo que convém não acreditar nunca na existência de homens em que a vida não tenha deixado cicatrizes, deformações, marcas repugnantes ou apenas lamentáveis....”.
Sobre o relacionamento entre Bilden e Freyre, segundo registra a pesquisa de Pallares-Burke, os documentos revelam que com o passar do tempo, e à medida em que ganhava autoridade e fama, Freyre foi se dando mais e mais ao trabalho de adulterar os elogios que originalmente fizera a Bilden e minimizar a importância intelectual de seu amigo alemão. “Obviamente eu preferia que esses documentos inexistissem e que a amizade entre os dois tivesse sido sempre marcada por solidariedade, fidelidade e aliança”.
De acordo com a biógrafa, a própria história do movimento dos direitos civis nos EUA ganha nova dimensão quando se amplia o quadro e fica evidente que a batalha de Martin Luther King apoiou-se em todos aqueles que prepararam o movimento antes que ele tomasse impulso e se organizasse nos anos 1950. Registrar os que antes dessa época fizeram um trabalho de base, sobre qual o movimento cresceu, significaria, para Pallares-Burke, resgatar pessoas como Rüdiger Bilden, que procuraram incluir os negros no “sonho americano”, até então limitados aos brancos. Em importante seção do título, a autora registra que desde o final dos anos 1920, Bilden era próximo da “intelligentsia negra” da chamada “Renascença de Harlem” e dedicava-se a atividades voltadas para a elevação da autoestima e melhoria das condições dos afro-americanos.
Pallares-Burke foi convidada pela Festa Literária Internacional de Paratay, em 2010, para ser curadora da homenagem de Freyre. “Confesso que me surpreendi quando me inteirei dos comentários negativos que estavam sendo feitos em certos círculos sobre a escolha de Fernando Henrique Cardoso para a abertura da Flip; comentários que relembravam sua antiga oposição ao pensamento de Freyre. Era previsível tal reação, mas se não a previmos foi porque estávamos relembrando outros aspectos do relacionamento de FHC com Freyre. O que pesou na escolha da Flip foi o fato de FHC ser um admirador crítico da obra de Freyre; alguém que tem dialogado com suas ideias desde o início de sua carreira acadêmica, às vezes discordando frontalmente – como sobre a questão da tão falada ‘democracia racial’ – mas sempre o considerando um interlocutor valioso. E mais ainda, tendo sido um dos críticos mais argutos de Freyre, foi ele também que, quando presidente do Brasil, instituiu, por decreto federal, o ano 2000 como o ‘Ano nacional Gilberto de Mello Freyre’, algo provavelmente inédito na carreira de intelectuais de qualquer parte do mundo. Assim, ironicamente, um dos sociólogos mais críticos de Freyre (ao lado de Florestan Fernandez) teria sido um dos grandes responsáveis por lhe conferir uma honra nacional, que, sem dúvida, representou o ápice de sua fortuna, numa carreira que tem oscilado, ao longo de décadas, entre canonização e excomunhão.”
Em conclusão, Pallares-Burke enfatiza que a discussão do relacionamento entre Bilden e Freyre ocupa somente uma pequena parte do livro (“28 páginas para ser precisa”). Para a autora, a história tumultuada e rica de um alemão culto, talentoso e determinado tentando se estabelecer nos EUA durante o século 20 e lutando para fazer uma diferença no mundo é o tópico principal do livro. “Seria lamentável, para não dizer irônico, que um livro dedicado a tirar Bilden da obscuridade e entender o contexto em que viveu, atraia mais atenção para Freyre e continue a deixar seu amigo alemão na sombra. Poderia apostar que Freyre, o crítico das ‘biografias triunfais’, ficaria desconcertado se isso acontecesse”.