Ilustração por Karina Freitas

 

Ele pode não ter inventadoo futuro, mas certamente vislumbrou boa parte da realidade a que assistimos hoje— em especial, no cinema. Nada menos do que 20 produções foram inspiradas em romances ou histórias curtas de Philip Kindred Dick, ou PKD, como o chamam os iniciados na literatura deste que é cada vez mais considerado o mais influente escritor de ficção científica do século 21 nascido no século 20. Mas e Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Ray Bradbury, Stanislaw Lem, William Gibson? Como esses autores — todos dezenas de vezes adaptados ao cinema —, K. Dick não se satisfez com os limites que muitas vezes travam a ficção científica em clichês de viagens espaciais, robozinhos, teletransporte, gadgetsmilagrosos etc. Seus livros falam de metafísica, estados alterados de percepção, busca por identidade, confronto entre sagrado e profano, e, acima de tudo — nada mais contemporâneo — o conflito entre o real e o virtual. Em todos os seus livros paira a serpenteante frase do próprio PKD: “Realidade é aquela coisa que, quando você para de acreditar nela, continua lá”.

 

O norte-americano de Chicago (1928-1982) foi festejado por autores tão diversos quanto o filósofo francês Jean Baudrillard, os escritores Roberto Bolaño e Ricardo Piglia, os cineastas David Cronenberg, David Fincher e Spike Jonze e a banda novaiorquina Sonic Youth (cujo álbum Sister é inspirado em sua vida). Sua vasta influência espraia-se da neurociência à filosofia; dentro da ficção científica, ecos de K. Dick podem ser ouvidos no cyberpunk, subgênero cujo expoente é William Gibson (autor de Neuromancer, que deu origem à trilogia Matrix), pela ficção especulativa, subgênero pós-apocalíptico que aproxima o futuro da realidade contemporânea, como nos livros de Margaret Atwood, e pela weird fiction, que transita entre o futurista, o horror e a fantasia, cuja estrela é China Miéville — que, ao terminar Os três estigmas de Palmer Eldritch, disse a si mesmo: “É isso. Acabou. A literatura acabou”.

 

Palmer Eldritché um dos livros que a editora Aleph recoloca em circulação em uma coleção agraciada com o belo design criado pelo paulistano Pedro Inoue, diretor de arte da revista canadense Adbusters. Escrito em dois meses de 1964, ano em que o ácido lisérgico ainda podia ser comprado em farmácias, o que deu liga para K. Dick escrever Palmer Eldritchnão foi a ingestão de micropontosconforme dedurava a crítica da época (“o primeiro romance sobre LSD”) e sim a leitura da famosa experiência de Aldous Huxley com mescalina descrita em As portas da percepção. Apesar — ou por causa — das vivências com drogas, no fim da vida PKD era radicalmente contra seu uso, por ter perdido muitos amigos para o vício, a doença ou a morte (conforme relata no posfácio de O homem duplo, romance que inspirou o filme homônimo, de Richard Linklater). Talvez o mais adequado seja apontar Palmer Eldritchcomo o primeiro romance a combinar realidades virtuais, religiões monoteístas e alucinações motivadas por uso de psicoativos — alertando, de modo visionário, como corporações e governos “democráticos” podem, de cara limpa, manipular o acesso às drogas para controlar a economia e a sociedade.

 

No pacote da Aleph está também Realidades adaptadas, reunião de vários contos que inspiraram filmes como O vingador do futuro (recém adaptado ao cinema com Colin Farrell como protagonista), Minority reporte O pagamento (a editora negocia uma reedição de Andróides sonham com ovelhas elétricas?, romance que deu origem ao filme Caçador de andróides, de Ridley Scott). Fluam, minhas lágrimas, disse o policial(já editado aqui pela Brasiliense, sob o título Identidade perdida) é a aterrorizante história de um astro pop planetário que um dia acorda totalmente anônimo, como se jamais tivesse existido: nem mesmo sua amante o reconhece. Ubik, uma comédia metafísica, é ambientado em um mundo em que os mortos são mantidos por seus parentes em uma “meia-vida”, e podem conversar com eles — até que um acidente faz um desses mortos carregar pedaços do presente para o passado. Por fim, a leva traz o livro de PKD favorito de Jorge Luis Borges, um romance não exatamente de ficção científica: O homem do castelo alto. A premissa é que os EUA perderam a Segunda Guerra para o Eixo e foram fatiados entre Alemanha e Japão. Mas, lendo o I-Ching, o misterioso homem do castelo alto percebe que esta é uma realidade alternativa, e que a realidade verdadeira mora em outro lugar... Mesma sensação que se tem ao finalizar qualquer narrativa de PKD: a impressão do mundo se desmanchando sob nossos pés conforme avançamos na leitura. Todas as suas obras têm em comum lógica alucinatória e humor negro; realidades alternativas podem ser vendidas, individualidades podem ser erodidas, e a questão do que é humano redefine-se à medida em que o virtual se torna o real — e a noção de divindade pode surgir de um produto prosaico ou de uma droga de uso massivo.

 

Mulheres, drogas e muitos livros

PKD nasceu em Chicago em 1928, em um parto prematuro complicado por conta da doença renal da mãe, em que sua irmã gêmea morreu. O escritor sempre relatará sentir o fantasma da irmã como o conflito que o levará a sentir-se incompleto, ou, pior, tendo sua identidade trocada com outro indivíduo. Era uma criança tímida, imersa em livros — e que às vezes tinha visões de paz e felicidade, a que mais tarde nomeará pelo termo budista satori. Aos 10 anos, criava o primeiro fanzine de quadrinhos; aos 15, escrevia o primeiro romance; aos 19, começava a se tratar com um terapeuta jungiano; aos 22, já morando na Califórnia, se casava pela segunda vez; vivia em extrema pobreza — chegou a comer carne de cavalo para sobreviver —; aos 23, escrevia o primeiro livro, o angustiante Vozes da rua, só publicado em 2007 (saiu por aqui pela Rocco). Publicaria o primeiro romance, Loteria solar, em 1955, início de sua produção desenfreada como escritor de ficção científica, que abrangerá cerca de 44 romances e 121 contos. Nessa época se iniciava nas anfetaminas, que aceleravam sua produção em maratonas criativas com dias inteiros de duração.

 

Em 1962, “quando achei um caminho de fazer tudo o que queria como escritor, pulando o hiato entre o mainstream, o experimental e a ficção científica”, publicou O homem do castelo alto; o livro lhe deu o primeiro Hugo Awards, mais importante prêmio de ficção científica. Em 1964, depois de visões devastadoras em que via um rosto humano no céu, escreveu Os três estigmas de Palmer Eldritch; no mesmo ano experimentou LSD pela primeira vez. Foi uma bad trip: Dick viu Deus como uma “furiosa massa autoritária clamando por vingança”. Em 1966, publica três livros e escreve quatro outros — entre eles, Ubik e Andróides sonham com ovelhas elétricas?. Em 1969, recebe uma ligação de Timothy Leary, que estava no famoso Bed-Incom Yoko Ono e John Lennon — este havia lido Palmer Eldritch e disse a Dick que estava louco para filmar o livro. Ao mesmo tempo, seu quinto casamento (já tinha duas filhas) entrava em crise, bem como seus rins, deplorados pelo uso frenético de ritalina e anfetaminas. Fluam, minhas lágrimas foi escrito em 1970, motivado por uma experiência de “radiante amor” durante o uso de mescalina — nessa época sua casa havia se tornado um condomínio de hippies, ciclistas e drogados muito semelhante ao ambiente retratado em O homem duplo— que escreveria em 1973, quando, depois de uma tentativa de suicídio, entrou em uma clínica de reabilitação.

 

O ano de 1974 foi marcado por uma série de visões perturbadoras, iniciadas após arrancar um dente do siso — na anestesia para a cirurgia, havia tomado pentotal. Perturbado pela “visão do raio rosa”, escreveu um texto de oito mil páginas chamado Exegese;a visão teria salvo a vida de seu filho mais novo — uma voz teria lhe soprado que o garoto recém-nascido tinha uma doença ainda não detectada pelos médicos, e ele pôde ser operado a tempo (Robert Crumb quadrinizou o episódio em A experiência religiosa de Philip K. Dick). Em 1975 se abria seu reconhecimento popular: a Rolling Stone publicou um longo perfil em que era chamado de “mais brilhante escritor de ficção científica em qualquer planeta”. Deprimido por não ter mais acesso àsrevelações místicas, terminava a Exegeseem 1980; mas, no ano seguinte, começaria a ter seguidas visitas de Ridley Scott, o diretor de Caçador de andróides, produção que Dick encarava de maneira ora desdenhosa ora feliz. Não chegaria a ver a película. Morreu de um AVC seguido de parada cardíaca em 2 de março, em Santa Ana, Califórnia, dois meses antes da estreia do filme que tornaria Philip K. Dick uma lenda da ficção científica.