Em 2014, o ano em que foram celebrados os centenários de quatro grandes autores latino-americanos (Octavio Paz, Bioy Casares, Cortázar, Nicanor Parra), houve outra figura, anterior e provavelmente mais controversa, que as coincidências do tempo também ajudaram a evocar. Tratava-se, neste caso, de um francês que faleceu em dezembro de 1814, há exatos 200 anos. Seu nome era Donatien Alphonse François, melhor conhecido como marquês. O Marquês de Sade.
Como aconteceu em relação aos autores latino-americanos mencionados, a efeméride propiciou e continua propiciando reedições, exposições e eventos que operam como fenômenos de mercado e também estimula, na França e alhures, a reflexão sobre um escritor, sobre o lugar que ocupa na tradição e sobre os laços que o vinculam com o presente.
Entre seus contemporâneos, e na posteridade, Sade haverá de ser admirado (isto é: considerado objeto de exaltação e de repúdio) pela sua invocação das práticas sexuais alternativas, pela exaltação orgiástica, pelas crueldades em série que se multiplicam na sua obra. É o libertino, por antonomásia, que aspira a reescrever toda moral, o pornógrafo exemplar, que faz do corpo o teatro da transgressão, o sábio desvairado que diz as verdades que ninguém quer ouvir, o censor de toda hipocrisia e de toda convenção, o apologista da banalidade dos vícios, o artista da blasfêmia, o sujeito excessivo que obriga a redefinir os significados da palavra excesso.
Sade, e o substantivo que deriva do seu nome, são muito mais conhecidos que sua obra. De Krafft-Ebing para cá, o termo sadismodeixou de ser um conceito técnico da psicopatia para se incorporar à linguagem de todos os dias. Ser considerado o filósofo da perversão, o arauto das felicidades libertinas, o implacável militante do ateísmo, o eterno prisioneiro de bordéis, cárceres e sanatórios outorga traços novelescos a uma biografia que parece gozar de muito mais fama do que qualquer um dos seus textos. Isso não significa, porém, que Sade seja apenas uma espécie de mito ou que não tenha sido lido. Muito pelo contrário: leitores de todo tipo (alguns célebres, como Flaubert, Apollinaire ou Huxley) conheceram os romances e opúsculos do marquês durante todo o século 19 e parte do 20. Tiveram que ser leitores sub-reptícios, impelidos pela clandestinidade que restringia a livre circulação desses textos, e que somente seria revogada a partir da década dos 1940, quando Jean-Jacques Pauvert, um editor que seria notório pela difusão de escritores marginais ou proscritos, publica Histoire de Juliette. Por esse gesto, Pauvert, que também seria responsável pela divulgação, dentre muitos outros, de autores tão revulsivos como Georges Bataille e Jean Genet, teve que enfrentar um longo processo, que acabou sendo um marco na luta contra a censura. Hoje, Sade integra a prestigiosa coleção da Pléiade, junto com os mais conspícuos nomes das letras francesas, e ocupa um lugar no panteão literário que, em outras épocas, teria sido inverossímil ou impensável.
Sade esteve preso grande parte da sua vida (viveu 74 anos e passou confinado, ao todo, 27). Teve a duvidosa distinção de ser prisioneiro tanto do Antigo Regime quanto da República, do Império e da Restauração, naqueles anos que tão radicalmente mudariam os destinos da França. Como outros autores que conseguiram transformar seu local de forçoso confinamento em teatro de operações da escrita, Sade é um escritor cativo, que teve que fazer do seu cativeiro a condição de possibilidade da sua literatura. Embora já tivesse escrito algumas obras antes, e já tivesse sido fugitivo, perseguido e encarcerado em diversas ocasiões, é no longo período que se inicia em 1777 quando o aristocrata de províncias Donatien Alphonse passa a ser Sade, o escritor apóstata. Preso em Vincennes e na Bastilha até 1790, quando a eclosão revolucionária lhe concede uma liberdade que, em alguns anos, voltaria a perder definitivamente até sua morte, Sade escreve algumas das suas obras mais importantes, como o Diálogo entre um sacerdote e um moribundo (1782), Os 120 dias de Sodoma (1785), Justine (1788) e Aline e Valcour (1789), além de várias peças teatrais e outros textos avulsos publicados posteriormente.
Então, não é mera coincidência que, em um autor cuja obra invade, modula e até substitui as evoluções da sua biografia, em um autor que, preso e afastado de todo convívio com o mundo exterior, passava os dias e os anos apenas comendo, imaginando, lendo e escrevendo, os espaços fechados e intransponíveis ocupem um lugar absolutamente central em várias das suas narrativas. Em Sade, tudo parece acontecer em locais definidos pela clausura, em espaços restritos e herméticos como um palco ao qual só pode ter acesso o seleto grupo de vítimas, algozes, ajudantes, mestres e aprendizes que povoam suas obras.
Lugares isolados, que guardam segredos e onde se cumprem atos excêntricos e seriados, conformam a topologia das ficções sadianas. Contudo, não são nunca um mero pano de fundo, nem um cenário que suporta a ação, mas espaços codificados pelas combinatórias da libertinagem, que deles precisam, tanto quanto dos libertinos protagonistas, para acontecer. Como disse Roland Barthes, um dos autores que, como Simone de Beauvoir, ajudaram a resignificar o lugar de Sade no cânone moderno, “a clausura do lugar sadiano tem uma função: funda uma autarquia social. Uma vez enclausurados, os libertinos, seus ajudantes e sujeitos formam uma sociedade completa, dotada de uma economia, de uma moral, de uma palavra e de um tempo, articulado em horários, trabalhos e festas. Aí, como em outros lugares, é a clausura que permite o sistema, isto é a imaginação”. São espaços que, como os falanstérios de Fourier, organizam a economia das paixões e permitem a encenação de gestos codificados e previstos, como se fossem ilhas utópicas regidas por normas específicas e autônomas.
Numa obra profusa em alcovas, criptas, salas trancadas e gabinetes, o mais emblemático desses espaços que configuram as fantasias de Sade talvez seja o castelo de Silling, onde transcorrem as peripécias atrozes e banais dos 120 dias de Sodoma. Les 120 journées de Sodoma or l´école du libertinagefoi escrito em 1785, com letra minúscula, em um famoso rolo contínuo de papel que, por milagre, não se perdeu, como um desconsolado Sade pensava, durante a toma da Bastilha. A obra seria publicada, pela primeira vez, apenas em 1904, para um público muito restrito, e só circularia mais amplamente na segunda metade do século 20, junto com outras obras do marquês. Nesse caso, Silling é o espaço heterotópico onde se exercem todas as possíveis pedagogias da submissão. Ao longo de quatro meses, quatro libertinos convocam quatro mulheres de meia-idade, experientes em desvios e condutas extravagantes, para que contem as evoluções das suas vidas, delitos e excessos. Mas não se trata de meras narradoras que, em forma intercalada, vão tecendo diversas estórias, segundo o modelo instituído naquele outro castelo imaginado por Bocaccio em Il Decameron. Nesse castelo florentino, um grupo de refugiados passa o tempo, enquanto se evade da peste que impera lá fora, multiplicando relatos licenciosos, satíricos ou didáticos. Em Silling, entretanto, não se trata somente de discursos, mas de atos, já que ali também está confinado um grupo de 16 crianças e adolescentes dos dois sexos, cuja principal ou exclusiva função será a de servir como vítimas da devassidão e das humilhações impostas pelos libertinos.
Esses atos estão sujeitos a uma rotina precisa, que marca os horários e as atividades de cada um dos 46 residentes do castelo conforme a sua posição na hierarquia instituída. Nas noites, uma das quatro mulheres, também conhecidas como historiadoras, ocupa seu lugar na tribuna e passa a contar uma história para seus ouvintes — os libertinos, suas esposas, os ajudantes e as vítimas — dispostos ao seu redor em forma semicircular. A cada mês, as histórias vão se referindo a um tipo específico de paixões: “simples”, “duplas”, “criminais” e “assassinas”. Como se seguissem um roteiro, esses ouvintes se encarregam de levar à prática as histórias ouvidas, transformam as palavras em ações, como em uma representação teatral. Cada movimento, cada figura composta pelos personagens depende de uma ordem, está ritualizado pelas convenções que regulamentam a existência no castelo, mesmo que sejam e pareçam atrozes, mesmo que essas ações envolvam a coprofagia, os estupros sistemáticos, as mutilações e os assassinatos. As regras são inflexíveis: toda manifestação religiosa será condenada com a morte, toda vez que o nome de Deus seja invocado, será a modo de maldição, se alguém se negar a ser submetido, deverá ser castigado severamente, aquele que pretenda fugir será imediatamente morto etc. Os únicos limites para a crueldade estão dados pelos horários, rigidamente determinados (por exemplo: as orgias devem necessariamente terminar às duas da manhã), e pelo espaço, cuidadosamente descrito em todos seus detalhes pelo narrador, da ilha-castelo-prisão erigida como cenário de conclaves, prazeres e torturas. Porém, acima de toda inaudita violência, nesse espaço instrumentalizado pelos rituais da perversão, representam-se antes de tudo a mordaz paródia dos bons costumes da sociedade da época e a crítica mais ferrenha das ambições do projeto ilustrado de controlar o mundo natural e ordenar os saberes, as práticas e as políticas através da Razão e dos seus métodos. Nessa hybrisiluminista subjazem não a paz social nem a felicidade geral, mas as sementes da opressão e do totalitarismo, tal como o veria Pasolini ao filmar sua adaptação do romance em Saló, os 120 de Sodoma(1975).
Sade pode ser visto então como um visionário, que soube imaginar um tempo por vir, mesmo que não fosse essa sua intenção, mesmo que se importasse apenas com o presente de uma sociedade que pretendia reinventar. Pode ser visto também como a sombra e o lado oculto das redenções sonhadas pela Ilustração. Como um profeta das paixões secretas, dos desejos proibidos e apenas formulados; como heresiarca-mor das filosofias da alcova. Quiçá Sade seja tudo isso hoje, quiçá seja isso e algo mais no futuro, sem deixar de ser o que seu destino quis: um autor que passou grande parte da sua vida como cativo perpétuo da lei e da sua própria imaginação.