No último artigo de nossa série, dedicamos espaço a um escritor inclassificável. Praticamente desconhecido do leitor atual, Tomás Seixas escreveu intensamente para os jornais pernambucanos durante pelo menos uns 30 anos, dos anos 1940 até o final dos anos 1960. Inclassificável, porque embora tenha produzido poemas, poemas em prosa, e textos reflexivos sobre a literatura e o papel do crítico, isso tudo parecia se misturar em zonas de contato muito singulares no panorama da literatura pernambucana.
Nascido em 1916, no Recife, e dedicado a fazer de sua vida a vida de um dândi na esteira de Baudelaire e Rimbaud, que representavam algumas de suas paixões literárias fundamentais, ao lado de Rilke, Kafka, Joyce, entre outros; Tomás Seixas teve sua obra envolta de tal forma pelo desconhecimento que a importante antologia Pernambuco: terra da poesia, organizada por Antonio Campos, informa, por exemplo, que Tomás teve um único livro de poemas publicado em vida. Na verdade, seu primeiro livro, Os mortos, data de 1942, e apresenta grande influência do movimento surrealista. E, além dele, o poeta lançou Adeus à adolescência, também na década de 1940. Segue-se um longo hiato em que não podemos afirmar que não tenha publicado nada, já que Tomás Seixas preferia as plaquetes e publicações independentes, com poucos textos, numa postura marginal que ao longo de sua vida ia se investir, como demonstram os depoimentos daqueles que foram amigos próximos, de outras peculiaridades. Morto em 1993, sua obra literária está esperando ainda uma reunião que possa exprimir sua qualidade e singularidade. Ainda podem ser somadas a essa escassa lista Sonata a Lilian, de 1984, estranha narrativa que põe em cheque a questão dos gêneros, assim como o igualmente desconcertante A casa dos sonâmbulos, de 1990, misto de romance, biografia e crítica de livros e arte.
A ideia de uma escritura, de que falavam teóricos da literatura e críticos, como Barthes, Derrida, entre outros, pode ser utilizada, num certo sentido, para definir os textos de Tomás Seixas. Os gêneros se diluem e dão lugar a um fluxo em que a criação e a reflexão sobre a literatura compõem um contínuo, potencializado pela linguagem e por uma forma sutil de olhar para a realidade, esta sempre mediada pela memória e pela palavra que nunca pertence apenas ao produtor da escritura, mas a um legado poético-existencial que se origina nos autores fundamentais da modernidade — Baudelaire, Rimbaud, Valéry, Joyce, Rilke, Kafka — e desembocam no texto “novo”.
Na sua crítica literária, ou seja, naqueles textos que produziu com o intuito, principalmente, de refletir sobre obras e estilos — embora, essa divisão entre criação e crítica só seja possível até certo ponto — comparece certo “impressionismo”, como foi próprio da crítica feita nos jornais. Nesse sentido, seus textos se enquadram bem na noção de crítica de rodapé, até porque após o período de vigência desse tipo de crítica, Tomás Seixas não publicou textos reflexivos sobre literatura num livro independente. A reflexão crítica dilui-se nas suas últimas obras. Mas, é preciso dizer, já nos seus textos, por assim dizer, críticos de rodapé, as fronteiras entre criticar e criar estão postas em xeque.
No início da década de 1950, encontramos Tomás Seixas numa coluna que manteve no Jornal do Commercio, intitulada Anotações, alinhavando uma espécie de narrativa autobiográfica em meio aos livros e ao contato com escritores e poetas; com reflexões pontuais sobre a obra de T. S. Eliot: “Encontro em T.S. Eliot um domínio integral de todas as formas, todas as cores. Eliot sutiliza as expressões, mesmo as mais vulgares ou de uso corrente, fazendo como nenhum outro poeta moderno a poesia particular da vida cotidiana”. As Anotações, sempre se referindo ao mês de publicação — essa em que ele cita Eliot são as Anotações de junho —, apresentam um caráter fragmentado e aparentemente caótico. A cada mês ele publicava um pequeno conjunto desses fragmentos que tratavam do Carnaval, da melancolia, da contemplação da tarde, enfim, sempre com lastro em alguma obra, em algum texto literário. Após o fragmento citado acima sobre Eliot continua o crítico-poeta: “Imagino durante esse passeio o poeta Eliot deambulando através das ruas de Londres, conversando com os seus amigos, tomando chá na companhia de uma velha amiga da sua mocidade, acertando o seu relógio por um relógio público. Tenho pensado muito em Eliot, ultimamente... mas é melhor calar, me diz ele através de um dos seus poemas”.
Uma leitura mais apurada desses textos de Tomás Seixas permite ver que a ideia dos intertextos estão em profunda sintonia com a sua visão de memória, uma memória de vida que se confunde com a reminiscência de suas leituras, um apagamento também das fronteiras entre memória individual e memória literária. Em 1951 publica no lugar das anotações uma pequena narrativa, intitulada Os últimos dias de Oscar Wilde. Num breve relato, compõe o que seria o período final da vida de um dos autores que cultuava. Wilde é descrito como um “admirador exaltado da própria personalidade”, ou ainda um homem arruinado pelos valores da época e perdido entre a sua antiga identidade, destruída publicamente pela prisão por ser homossexual; e a identidade que assumiu, simples e anônima, para viver seus últimos e miseráveis dias. Há algo de romântico, de heroísmo patético nos autores interpretados por Tomás Seixas e que representam, desde a velha visão romântica do poeta como um apartado, até a visão mais moderna do escritor como um agente subversivo da linguagem. Tanto num âmbito como no outro, o exercício da literatura adquire uma aura marginal ou maldita.
Em 1966, no mesmo Jornal do Commercio, Tomás Seixas trata justamente desse caráter subversivo da literatura ao escrever sobre Joyce. O artigo se chama O gênio analítico de Joyce, e nele Seixas assinala esse proceder com a linguagem como marca fundamental da modernidade de Joyce. Segundo ele, “tendo como objetivo destruir os preconceitos da lógica comum, que, tanto no domínio da vida social, quanto no da arte e da estética, rege uma infinidade de criaturas, é que Joyce, no Ulisses, começou por subverter implacavelmente as leis da linguagem escrita”. Essa subversão garantiria a Joyce um lugar ao lado dos escritores e poetas que fizeram da literatura aquilo que o crítico francês Jacques Rancière chamou de verdadeira contracultura. Algo desse heroísmo moderno e patético, como já afirmamos, Tomás Seixas tentou levar para a sua própria vida. Uma pista para isso encontra-se num artigo publicado também em 1966, intitulado Poetas, onde ele relembra um encontro seu com Lêdo Ivo, Cyro dos Anjos e Thiago de Mello, no Rio de Janeiro. Afirma o poeta que à época não pôde intervir diretamente na conversa sobre o valor dos poetas franceses — Lêdo Ivo afirmava, segundo Tomás Seixas, ser Victor Hugo maior do que Baudelaire — e que utilizaria então o seu artigo para dizer aquilo que ficou suspenso num gesto que os ânimos exaltados sufocaram. E ao exprimir sua opinião sobre a poesia, diz que “devem os poetas ser tão poéticos quanto os seus poemas”. Eis a chave para compreender o dandismo que Tomás Seixas ostentou toda a sua vida. Foi uma maneira de fazer valer a máxima de Rimbaud, poeta que representava uma das suas maiores paixões literárias: a de poetizar o cotidiano. Assim Tomás Seixas fixou a imagem de um boêmio inveterado, convivendo com todo o underground de sua época.
Mas além do boêmio, ou melhor, juntamente com ele, a imagem do devorador de livros, um leitor borgeano, preso numa babel labiríntica e sombria. Parecia que só valia a vida que emanava dos livros, superando sempre a vida por viver. Nas palavras de César Leal, que com Francisco Brennand, entre outros, participou de um grupo do qual fez parte Tomás Seixas, reunindo-se sempre para conversar e discutir sobre literatura: “Ariano Suassuna costuma dizer que é algo de maravilhoso ouvir Tomás Seixas falar sobre a arte e a literatura de qualquer época. Embora nunca haja ensinado em uma universidade, ele fala sobre Cervantes e Shakespeare com elegância, força e segurança, somente comparável a poetas como Oscar Wilde, um Pound e um Montale”.