Ilustração por Janio Santos

 

A chamada crítica de rodapé, ou crítica humanista, que marcou presença nos nossos jornais e suplementos nas décadas de 1940, 1950 e 1960 não foi praticada apenas por críticos profissionais, ou melhor, por críticos que se dedicavam apenas ao ofício da crítica. Parte desse legado também foi exercido por escritores que se desdobraram num duplo embate, seguindo a lição baudelaireana: dedicar-se à escrita literária e, ao mesmo tempo, à reflexão sobre a própria literatura, transformando a crítica dos seus contemporâneos numa ferramenta para isso.

 

Haroldo Bruno, nome muito pouco lembrado hoje quando se fala na crítica de rodapé, abraçou essa unidade de criador-crítico. É verdade que não só sua obra ficcional, composta por dois romances e dois livros dedicados ao público infantojuvenil, é reduzida; como também sua obra crítica, composta na maioria por seus artigos publicados principalmente entre as décadas de 1930 e 1950, em vários jornais do Recife e de todo o país, apresenta-se tímida. A qualidade tanto de uma quanto de outra, entretanto, conferem-lhe um lugar tanto na história de nossa crítica, quanto na história da ficção brasileira do século 20.

 

Nascido no Recife em 1922, filho de Aníbal Bruno de Oliveira Firmo e Aurora Spencer de Oliveira Firmo, viveu a infância viajando pelo interior do estado, acompanhando o pai médico. Seus estudos incompletos — desde o ginasial no colégio Salesiano do Recife, que também abandona — dão lugar à decisão de assumir suas inclinações autodidatas, inclusive com o apoio do pai. Decidido a não diplomar-se em nenhuma profissão liberal, lança-se de maneira radical à literatura. Sua estreia se dá no Diario de Pernambuco, com um artigo sobre romance de José Lins do Rego. Em 1948, a família se muda do Recife para o Rio de Janeiro, e lá continuaria sua atividade jornalística. Colabora em vários jornais e apresenta um programa de rádio: O escritor e o livro. Os anos 1950 marcam um período de reconhecimento considerável, escreve a seção “Bilhetes de Crítica” no Jornal do Brasil e recebe o seguinte elogio de Fausto Cunha: “Em dado momento Haroldo Bruno parecia o legítimo herdeiro de Álvaro Lins como primeiro crítico oficial do país”. Em 1954, ocorre a primeira reunião de seus artigos em livro — Anotações de crítica, em edição do Departamento de Documentação e Cultura da Prefeitura Municipal do Recife. Dedica-se, após esse período, esporadicamente à crítica, à ficção e ao rádio.

 

Ciente da posição crítica que assumiu ao longo de sua trajetória de periodista, numa advertência para uma das últimas reuniões de seus artigos de crítica — Novos Estudos de Literatura Brasileira (1980), escreve: “O que aqui se apresenta ao leitor não é — nem pretende ser — postulação indicativa, hermenêutica textual, teorização da problemática literária. É — confessemos sem pejo — o resultado fragmentário de um modo pessoal e mais ou menos livre de ler, de conceituar, sobretudo de sentir ou intuir, tanto quanto possível como resposta estética, o sentido da criação literária, que para nós continua a ser uma manifestação de arte”. Desse modo, Haroldo Bruno assinalava posições importantes da chamada crítica de rodapé, que recebia então a pejorativa denominação de impressionista: a prática crítica como “um modo pessoal e mais ou menos livre de ler” exprimia a posição central do crítico, insubmisso a métodos que ele podia decidir usar ou, se fosse necessário, criar segundo suas impressões ou intuições; ou como “resposta estética”, resgatando o caráter de experiência particular da leitura, onde o leitor-crítico constrói com o percurso de sua leitura o sentido interpretativo que método nenhum poderia lhe dar. Nesse mesmo texto, opõe-se aos “acadêmicos de várias matizes”, que “torcendo o nariz, chamam de crítica impressionista” esse tipo de leitura; aqueles que desejam um tipo de abordagem “tão objetiva e meticulosa e exata quanto são as ciências matemáticas”.

 

Entusiasta da obra de Kafka, Haroldo Bruno — que escreve um romance intitulado A metamorfose — situa-se num momento em que a crítica pode parecer avessa a uma literatura mais experimental. E já se comentou que a crítica de rodapé representou um olhar pouco generoso para as literaturas vanguardistas. Num certo sentido isso pode ser explicado por dois fatores principais: primeiro, pelo fato de ser produzida para os jornais, pois, inevitavelmente, o crítico tem de levar em conta que o seu público leitor é vasto e heterogêneo, o que o leva muitas vezes a se preocupar com a “clareza”, ou a linguagem acessível que estaria comprometida em algumas obras mais radicais; segundo, pelo fato de estar posicionada num momento histórico que já é balanço do modernismo e de suas conquistas. Haroldo Bruno começa seu artigo Posição de Mário de Andrade, publicado em 1948, assinalando a independência de pensamento e sensibilidade do poeta paulista: “O que parece sobretudo admirável em Mário de Andrade, já se observou algumas vezes, era o seu poder de curvar-se ante a renovação dos tempos, de lutar virilmente por certas ideias, da mesma forma que as rejeitava quando imprestáveis”.

 

O Mário de Andrade visto pela ótica de Haroldo Bruno não deixa de ser um julgamento do próprio modernismo que, como todo movimento literário, está situado num terreno que alimenta o escritor mas que não pode, ao mesmo tempo, ser a única fonte sua de subsistência. Como todo espírito de época, parte dele será negada pelo escritor que se colocar — como o próprio Mário de Andrade — num lugar mais alto de criação. Assim “Descontados os compromissos com o movimento, que lhe valeram o envelhecimento prematuro de grande parte da obra, ainda assim restaria o experimentador a demonstrar um conhecimento virtuosístico de toda a teoria literária, pela variedade de processos que empregou no conto, no romance, na poesia, deixando um livro realmente estranho e único entre nós, aquela obra-prima que é Macunaíma, no arrojo da concepção e da invenção”.

 

O equilíbrio entre impulsos renovadores e forças tradicionais parece ser também o que motiva o elogio à obra de Graciliano Ramos, num artigo de 1946. Para o crítico, o romance moderno brasileiro dicotomizava-se entre o realismo social e as tendências psicológicas. Faltava uma obra, segundo ele, que pudesse fundir as “aliciações do meio ambiente” e “as reações da consciência individual”. Graciliano Ramos alcançava isso, levando o crítico a colocá-lo num alto patamar, ocupado por Machado de Assis, ambos representando, cada um no seu tempo, mestres do gênero romance. Logo, para Haroldo Bruno, “O exemplo mais alto, no Brasil, desse romance equilibrando numa síntese existencial os aspectos da realidade concreta e da sua projeção no espírito, acha-se no criador e memorialista Graciliano Ramos”. Nesse mesmo artigo, que é por sinal dedicado a Infância, é celebrada ainda a capacidade do escritor alagoano em construir uma ótica infantil em que o “menino Graciliano” ansiava por pais que fossem mais amorosos e menos juízes.

 

Haroldo Bruno, como os grandes representantes da crítica de rodapé, nunca esteve alheio a uma reflexão sobre a própria prática crítica, dedicando parte das páginas que publicou nos jornais a uma crítica da crítica, ou seja, a discutir e refletir sobre as ideias e a prática de outros críticos, fossem seus contemporâneos e conterrâneos, fossem os estrangeiros. Assim, o encontramos em 1948 situando o crítico francês Ferdinand Brunetière em meio às correntes críticas de sua época com bastante lucidez. No centenário do autor de L’Evolution de genres dans l’histoire de la littérature, tenta demonstrar que a ideia de Brunetière de que os gêneros literários evoluíam semelhante às espécies, regidos por uma lei estética própria, em paralelo com as leis biológicas, e independentes, até certo ponto, da história; diferenciava-o de outros críticos franceses de então, como Hippolyte Taine, para quem a literatura estava submetida a fatores como meio ambiente, raça e momento histórico. Bruno acreditava que Brunetière “reivindicava para a literatura uma autonomia que Taine, considerando-a simples produto de fatores externos, não poderia jamais aceitar”.

 

Dentre os artigos sobre críticos, vale destacar o que ele dedicou a Álvaro Lins, em 1949: Álvaro Lins e a crítica de poesia. De um certo modo, para ele e para outros vários críticos de rodapé, Álvaro Lins será um modelo do esforço de objetivação para tratar, por exemplo, uma das questões mais difíceis até mesmo para os críticos acadêmicos de hoje — a poesia moderna e aquilo que nela tende ao hermético. Nesse artigo, é essa poesia difícil, espiritualizada à sua maneira, abstrata, radical, impopular (diria o filósofo Ortega y Gasset), mas frequente entre os autores dos anos 1940 e 1950, que desperta a consciência do crítico para as limitações da linguagem que ele utiliza para escrutinar as expressões literárias modernas. Logo no início do artigo, Haroldo Bruno anota que “De quem a realiza, a crítica de poesia pede não apenas essa faculdade, que a muitos parece simplesmente esotérica, de apreensão do fenômeno poético, uma sensibilidade particular, naturalmente afeita ao ritmo e à envolvente sugestão das coisas, mas, também, um aparelho técnico de expressão destinado a registrar todas as variações imagísticas e simbólicas de que se nutre a verdadeira poesia”. Para ele, Álvaro Lins reunia essas qualidades, inclusive pelo fato de apresentar plena consciência de que o crítico tem que “reconstituir e organizar vivamente o poema, mas em termos de razão”, deturpando-o de certo modo ao transportar sua força estética para a linguagem prosaica e reflexiva da crítica. A partir daí opõe Tristão de Athayde e Álvaro Lins, na medida em que o primeiro defende uma espécie de medusamento crítico diante do “mistério místico” (sic) da poesia; e o outro justamente o esforço de objetivação diante desse mesmo e aparente mistério.

 

Era justamente a valorização dessa conduta racional diante do mistério da poesia que podia produzir crítica de poesia de valor. E essa conduta era a principal contribuição de Álvaro Lins para o pensamento crítico do Brasil naquele momento. Como uma espécie de “agente intelectual”, Álvaro Lins seria o “crítico de poesia por excelência, aquele que não se perde em divagações, e, embora não atinja a amplitude de um sistema, tudo converte a enunciados simples”. Em outras palavras, a consciência crítica de tornar inteligível a parte da obra poética que se presta a apreensão pela razão, pois nenhuma obra de arte seria “um exclusivo produto do automatismo psíquico” — nas palavras de Álvaro Lins que Haroldo Bruno transcreve.

 

Haroldo Bruno é uma peça importante dentro do concerto geral da crítica feita em jornais, não só de Pernambuco, mas também de São Paulo e, principalmente, no Rio de Janeiro, onde residiu a partir de 1948 até a sua morte em 1984. Além de seus romances A metamorfose(1975), e As fundações da morte(1976); e dos livros que reúnem parte de seus artigos Anotações de crítica(1954) e Estudos de literatura brasileira(1966), são indicações importantes de leitura Novos estudos de literatura brasileira(1980) e Uns poucos estrangeiros(1983), publicado um ano antes da sua morte, reunindo artigos seus sobre autores estrangeiros, tais como Rimbaud, Unamuno, Borges, Joyce, Pound e Nicolás Guillén.