Ilustração por Karina Freitas

 

15h. Café Vitrine.Curitiba. Encontro com meu amigo, o escritor Luís Henrique Pellanda. Ele me presenteia com um livro. O título me inquieta. Me parece um material instigante para o laboratório que coordeno de formação de mediadores de leitura. Saber como os escritores criam suas obras. Saber como eles pensam. Volto para casa animado, mesmo tendo milhões de coisas para fazer, não consigo deixar de começar a ler.

 

Nos últimos anos tenho procurado e colecionado (outra maneira de nominar uma pesquisa bibliográfica sobre um tema especifico) livros que tratem da leitura em algum sentido. Elaborar um programa para um laboratório deste tipo exige de quem o faz um olhar muito aberto, disponível.

 

Perder a inocência faz muito mal ao escritor. (pág. 37). Bendita cegueira, a do escritor. (pág. 53). Tratava-se de outra coisa: de escrever uma ficção. De usar o que eu tinha para chegar ao que eu não tinha. (pág. 69). Sou um colecionador de ideias incompletas, que vão sendo anotadas num caderno para futuras necessidades. (pág. 71). (...) e só então eu percebi que algumas realidades só a ficção suporta. (pág. 96)

 

São frases, ideias, percepções, enfim, exemplos do que vou colhendo conforme percorro o livro. Todas advindas de experiências vividas entre uma pessoa (um/a escritor/a) e um texto literário. Formam um caleidoscópio ímpar.

 

Ficcionais: escritores revelam o ato de forjar seus mundos, publicado pela Cepe, é um tipo de antologia que se encontra raramente. Primeiro pela proposta em si, como o próprio título já informa. Reunir textos curtos de diversos escritores que procuram revelar, em alguns casos confessar, como conseguiram elaborar, realizar e concluir seus romances, contos e poesias. Em segundo, pelo caleidoscópio que resulta da proposta. A meu ver, acaba por ser um tipo de enciclopédia contemporânea.

 

Entusiasmado, resolvo presentear os participantes do laboratório com um exemplar. E o presente dá novos rumos para as discussões. Apesar de em sala conseguirmos nos deter somente em um ou outro depoimento, cada participante fez a sua leitura, escolheu os autores e obras do qual desejava saber mais, e as descobertas, as revelações, foram transformadoras. Não foi só a mim que os depoimentos instigaram. De maneira unânime, a leitura de Ficcionais uniu a todos na compreensão de que esta espécie de antologia da produção literária brasileira contemporânea apresentava não só em questões centrais do processo de criação, como também revelava um novo olhar, indagador, agora sob a perspectiva do leitor. Ela acaba por se configurar como uma antologia de maneiras de se ler.

 

Essa imensa rede que se forma ao lermos as 110 páginas do livro revela a diversidade de processos de leitura. Revela como não existe uma leitura certa, uma compreensão específica de um texto de ficção. Revela como a literatura está profundamente imbricada com a vida, não apenas do seu criador, mas também do seu leitor.

 

Esse número, com certeza, significativo de escritores vivos, em plena produção, acaba por apresentar ao leitor um panorama muito rico, não só pela quantidade de temas e questões ligadas aos processos de escrita, mas também pela sua forma, pela sua concisão. São textos, como revela uma das autoras, de até 5 mil toques, portanto de, no máximo, duas páginas e meia. Espaço pré-determinado pelo organizador, já que o convite apareceu em primeira instância para que os convidados produzissem textos para a coluna Bastidores. E é deste espaço restrito que tudo emerge.

 

Um espaço, restrito, que me causou sensações diversas. Essa concisão, induzida aos autores, trouxe a mim, leitor, uma sensação de montanha russa. Viaja-se ao ler os 32 depoimentos no tempo e no espaço de uma maneira, no mínimo, inusitada. O leitor embarca nas questões, angústias, alegrias, dilemas, sucessos e especialmente, nos fracassos de cada escritor de maneira intensa e radical. Não há tempo de respirar. Quando você vê, já teve outra queda e, logo em seguida, outra subida vertiginosa. São, poderia se dizer, flashes de autobiografias, porque mesmo aqueles que não apresentam questões que envolvam a vida privada e dedicaram-se a tentar explicitar processos, escolhas e técnicas, de alguma maneira, acabam por revelar aspectos da sua biografia e da maneira de ver o mundo, a vida e a literatura. Não são dados objetivos, mas o que se consegue entrever em seus relatos. Exatamente como nos proporciona uma obra de ficção.

 

Mas o que enriquece a coletânea é a sensação de incompletude. Primeiro, porque o leitor se depara com um texto sobre um texto. Isto é, não temos a matriz. Em segundo lugar, porque é visível (e imaginável) a dificuldade de cada autor de escrever sobre processos, na maior parte das vezes, como já se sabe, bastante improváveis de se planejar na sua completude. Portanto, a sensação de que não nos foi revelado tudo, seja por que não há espaço para tanto, seja porque não é possível, é constante. Para mim, ao menos, percorre todos os textos. Afinal, por mais que se queira, não é possível falar tudo.

 

Mas é uma incompletude apenas, não uma insatisfação. É algo que instiga, que faz o leitor pensar, querer obviamente ler as matrizes, mas vai além, instiga a pensar sobre o que é criar uma obra literária, em qualquer tempo e lugar. Desmistifica a escrita, esse lugar sagrado reservado apenas àqueles que têm o dom, mas em hipótese alguma vai para o lado oposto, banalizando processos, invenções e o imaginário de cada um. Pelo contrário, humaniza.

 

Por todas essas razões, o que descobri, juntamente com os participantes do laboratório, não foi apenas um rico material que revela processos de criação de uma obra literária, mas foi além. Reconhecemos inúmeros exemplos que confirmam como a leitura também é um “ato de forjar mundos”. Como uma obra de ficção, o livro surpreende o leitor e deixa claro como a literatura não pode e nem deve se restringir a especialistas. Ela é feita para as pessoas. Não importa quem seja, nem sua origem. A literatura provoca, instiga, irrita, emociona, a quem é de direito, no momento de direito.