A evidência indica que muitas páginas já foram escritas sobre Antônio Vieira. Depois das comemorações pelos 400 anos da sua morte (em 1997) e depois das comemorações pelos 500 anos do seu nascimento (em 2008), alguém poderia pensar que escrever sobre o jesuíta hoje é um exercício fadado a incorrer em repetições e redundâncias. Refutar essa suposição, contudo, não seria difícil, e bastaria mencionar apenas dois argumentos. O primeiro, a série de esmeradas publicações que nos últimos anos colocaram ao alcance dos leitores textos pouco conhecidos ou nunca antes editados integralmente. Os textos proféticos publicados pelo Senado Federal, as Cartas completas reunidas pela Editora Globo, os Autos do processo na inquisição, compilados pela Edusp, e o Clavis prophetarum impresso na Itália são peças fundamentais que, somadas às contribuições de numerosos especialistas como Lúcio de Azevedo, Hernani Cidade, Besselaar, Carvalhão Buescu ou Alcir Pécora, entre outros, insistem em alimentar o renovado interesse pela obra de Vieira. O segundo argumento, igualmente contundente, parte da tremenda força expressiva da prosa vieiriana, que conserva intacta sua capacidade de promover, em diversos tipos de leitores de diversas épocas, um assombro e uma curiosidade que perduram através dos tempos. Seus sermões, cartas, opúsculos e tratados, firmemente ancorados nas vicissitudes e espessuras do século 17, conservam a virtude de defrontar com essa força ao leitor atual. Pode ser pasmoso que um autor que fala da ressurreição dos mortos, da vinda do Messias e da missão redentora a ser cumprida por Portugal se mantenha vigente entre nós. Mas Vieira é esse autor, e seus são os textos que continuam provocando admiração e desconcerto.
Militante de causas nobres e de empresas extravagantes, soldado de batalhas perdidas, orador de todas as argúcias e eloquências, profeta de contratempos e conflagrações, Vieira costuma ser apresentado como figura de vida tumultuosa e de obra heterogênea e contraditória. As peripécias que marcam sua trajetória parecem ter sido vividas para favorecer o trabalho dos seus ávidos biógrafos. Do famoso estalo no Colégio à sua atuação como conselheiro de reis e rainhas, das suas intrincadas missões diplomáticas nas cortes europeias aos seus confrontos com os colonos no Grão-Pará, das suas intrépidas viagens de evangelização pelos rios amazônicos à sua fatigosa condição de réu do Santo Ofício, das suas fulgurantes interpelações no púlpito à sua reclusão final na Bahia, a longa vida de Vieira parece estar composta por muitas vidas superpostas e dissimiles. Da mesma forma, quando se examina sua obra, o pragmatismo político que baliza os textos dedicados a lidar com a ocupação holandesa do Brasil entra em colisão com o veemente messianismo dos textos que anunciam a iminente consagração do Quinto Império, e a distinta beligerância dos sermões bate de frente com as mesuradas proposições em defesa de judeus e cristãos-novos. Esses evidentes contrastes e disparidades (que, contudo, nunca são extemporâneos e estão sempre situados em encruzilhadas históricas muito concretas e específicas) podem ser responsáveis por promover a estranheza diante da sua figura, mas ao mesmo tempo (e paradoxalmente), é mediante esses contrastes que podemos entrever as constantes que atravessam o intenso percurso cumprido pelo jesuíta. Constantes que se revelam entre as muitas caras de um Vieira que soube ser homem de mundo e homem de livros, pregador das metrópoles e das colônias, observador de eventos celestes e terrestres, diplomata, conspirador e visionário. Constantes que se condensam e cobram sentido em duas das suas permanentes vocações: a política e a escrita.
Vieira sempre foi um político, um político feito para angariar inimizades e controvérsias, para promover e replicar todo tipo de disputas, muito consciente do papel que lhe correspondia representar nas malhas da colonialidade. Faz política quando sugere entregar Pernambuco aos holandeses; quando alerta sobre a conveniência de convocar os capitalistas judeus para remediar a pobre economia do reino; quando condena as injustiças cometidas contra os indígenas; mas também quando, acuado pelos inquisidores, defende com infinitas citações, argumentos e falácias a função providencial que Portugal desempenharia nos destinos do mundo. Vieira sempre foi um escritor, um devoto da argumentação e da retórica. Escreve quando no final da sua vida revisa e corrige pacientemente os sermões pronunciados no passado; quando, compelido pelas circunstâncias, redige cartas a seus superiores e ao monarca; mas também quando decide empreender um projeto de décadas, que haverá de permanecer fatalmente inconcluso, para fabricar a chave que possa desvendar todos os mistérios ocultos nas palavras dos profetas. No escritor e no político confluem os itinerários divergentes que orbitam em torno do nome próprio de Antonio Vieira. No escritor e no político se reúnem os anseios de quem, como define Alfredo Bosi, “passou a sua longa vida entre os cuidados do presente e os sonhos do futuro”.
Não seria apropriado, portanto, pensar o Vieira que multiplica “sonhos de futuro” como anomalia ou excesso em relação ao Vieira que se ocupa dos “cuidados do presente”. Primeiro, porque o autor considerava que escrever textos visionários como a História do futuro era, dentre todas as tarefas possíveis, a mais importante e a mais urgente. Segundo, porque precisamente os textos que abordam os sentidos das profecias e os horizontes do porvir são os que revelam (tanto ou até mais do que os festejados sermões) as verdadeiras dimensões da figura do jesuíta em toda sua complexidade. Se Vieira não tivesse escrito seus textos sobre profecia quiçá continuaria sendo imperador da língua portuguesa, conforme o título concedido por Fernando Pessoa. Continuaria certamente sendo um estilista notável, um letrado arguto e engenhoso, um exegeta audaz, uma figura emblemática da Companhia, um barroco por antonomásia. Dificilmente, porém, seria isso que foi, isso que é, hoje, Antônio Vieira.
Nos textos proféticos, Vieira exibe seus altos dotes de sonhador. Sonhar para o jesuíta não se reduz a inventar mundos ilusórios nem a fugir das inquietações do real. Pelo contrário, o sonho é, para o escritor e para o político, a ferramenta para se inserir plena e porfiadamente nas derivas do presente. Seus textos proféticos revelam um duplo movimento: como correspondem a esse tipo de discurso antecipatório, anunciam o que virá a acontecer, mas também mostram os caminhos, as evidências e as deduções que permitiram formular tais anúncios. Esse duplo mecanismo pode ser claramente observado, por exemplo, na carta que Vieira escreve em abril de 1659 ao Bispo do Japão e confessor da rainha D. Luísa, o padre André Fernandes.
Dentre a enorme quantidade de cartas escritas pelo autor, esta é sem dúvida uma das mais singulares. Suas singularidades derivam do local em que foi redigida (“Camutá, no caminho do rio das Amazonas”), do tema extensivamente abordado (o advento do Quinto Império do Mundo) e do momento em que foi elaborada, um momento crucial na vida de Vieira. Antes, em 1656, tinha morrido D. João IV, em quem o jesuíta depositava todas suas esperanças. Depois, em 1661, o missionário, que tantos ressentimentos despertara no Maranhão e no Pará por sua defesa dos indígenas, seria expulso do Brasil. Dois anos depois da deportação, começaria o longo processo movido pela Inquisição contra suas ideias consideradas judaizantes e heréticas, processo no qual esta carta de 1659 constaria como prova de delito.
Um dos objetivos que a carta persegue é demonstrar a veracidade das profecias de Bandarra, o sapateiro de Trancoso que anunciara o retorno do Encoberto. O outro objetivo, ainda mais árduo, consistia em postular que o Desejado que tantas felicidades depararia ao mundo não seria D. Sebastião, mas o próprio D. João IV que acabava de falecer. Ambos os propósitos se articulam no curioso “silogismo fundamental” que Vieira propõe: “O Bandarra é verdadeiro profeta; o Bandarra profetizou que El-Rei D. João IV há de obrar muitas cousas que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando: logo El-Rei D. João, o quarto, há de ressuscitar”. Partindo deste silogismo, toda a carta se constitui como uma longa e meditada glosa das premissas expostas.
Para demonstrar que Bandarra era um iluminado verdadeiro (e não um “leigo, casado, idiota e de baixo ofício e condição”, mero emissor de “palavras confusas, dúbias e perplexas”, segundo opinará o tribunal), Vieira analisa e interpreta os sonhos, articulados em herméticas trovas, do sapateiro. Menciona circunstâncias passadas que supostamente teriam sido previstas pelo humilde vidente, e alega que, se Bandarra foi capaz de prever esses fatos, seria então adequado supor que outros eventos prognosticados iriam igualmente ocorrer. Por exemplo, a derrota dos turcos, a conversão dos gentios, o ressurgimento das tribos perdidas de Israel (tema que o jesuíta tinha discutido uma década antes em Amsterdam com o rabino Menasseh bem Israel), a redução dos judeus, a instauração da era feliz do Quinto Império e a batalha final contra o Anticristo. Tudo isso, segundo a leitura que Viera faz dos anúncios de Bandarra, estaria a ponto de começar a acontecer: “o prazo determinado para o cumprimento das suas profecias e dos prodígios prometidos nelas” seria o apocalíptico ano de 1666. Contudo, para que essas maravilhas pudessem realmente sobrevir, era necessário que antes ressuscitasse o encarregado de comandar os destinos da humanidade, o Restaurador, o rei dos portugueses, o ainda encoberto D. João IV. Vieira afirma que muitos homens (25, segundo São Francisco Xavier) já tinham ressuscitado, e que, portanto, seria néscio quem não aceitasse que o rei pudesse retornar, mas ainda em se tratando de um propósito “tão universal e tão extraordinário e o maior que nunca teve o mundo”. “Ressuscitará sem dúvida El-Rei D. João”, escreve Vieira na carta, “e a sua ressurreição será o meio mais fácil de conciliar o respeito e obediência de todas as nações de Europa (...). E este estupendo prodígio, visto com os olhos, será o que abrirá a porta à fé e execução de todos os outros”.
Desse modo, na carta de 1659, como nos outros textos que dissertavam sobre o futuro, Vieira se reserva o lugar do intérprete privilegiado, aquele que soube decifrar os anúncios revelados pelos profetas. Daniel, Isaías, Ezequiel, Bandarra tinham sido escolhidos pela Providência para vaticinar as formas do porvir. Munido da “razão natural”, Vieira se coloca como o encarregado de desvendar o sentido verdadeiro e completo das palavras anunciadas. “Dilata e fructifica” as profecias, para que seus contemporâneos soubessem tudo aquilo que ele já sabia.
Os inquisidores consideraram que suas opiniões eram produto de um entendimento “temerário, fátuo, escandaloso, errôneo”. Os céticos dirão que nem em 1666 nem depois aconteceram os eventos pressagiados pelo jesuíta. Vieira, entretanto, continua multiplicando suas interpretações, sem nunca aceitar “e nisso consiste a sua grandeza e também a sua desmesura- que o engano é um fantasma capaz de condenar todos os intérpretes. Com a força dessas argumentações, continua formulando suas promessas divinas, nas quais “acharão os afflictos alívio, os tristes consolação, os atribulados remédio, os combatidos socorro, os desconfiados esperança, paciência, constância e fortaleza”. Com o material dessas promessas, Vieira, o sonhador intransigente, continua sonhando.
Alfredo Cordiviola, professor titular do Departamento de Letras da UFPE
Confira a nossa segunda matéria de Especial: Vieira, político, politiqueiro e contraditório