[Leia aqui a primeira parte da reportagem, Um bom lugar pra ler um livro]
Após receber, das mãos do amigo João Ricardo, a Antologia poética de Vinicius de Moraes, com a incumbência de encontrar um poema para ser musicado, Gérson Conrad, ao chegar em casa, jogou o objeto na escrivaninha, de forma displicente. O livro caiu aberto. Intrigado com esse acaso, o músico foi espiar as páginas. E lá estava um poema desconhecido. Ele leu e foi dormir. Na madrugada, acordou inquieto e fez o que o instinto o impulsionava. Pegou o violão e começou a musicar, com uma melodia suave, triste e simples, com cinco acordes, Rosa de Hiroshima, que, na interpretação precisa de Ney Matogrosso, se tornaria uma das faixas marcantes do aclamado primeiro disco dos Secos & Molhados, maior fenômeno de vendas de 1973 e um dos álbuns icônicos da música brasileira de todos os tempos.
Revoltado com a explosão da bomba atômica nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em 1945, pelos Estados Unidos, Vinicius de Moraes, que, desde 1943, já era diplomata, escreveu o poema no ano seguinte ao fato. Quase 30 anos depois, em 1973, quando a banda foi fazer uma apresentação na TV Bandeirantes, os músicos souberam, nos bastidores, que Vinicius estava no mesmo local, aguardando para se apresentar com Toquinho. Gérson pegou o violão e foi bater na porta do camarim da dupla. Falou ao Poetinha que havia musicado Rosa de Hiroxima (no livro, era grafada com X). Só de ouvir falar no poema que havia escrito há muito tempo, Vinicius imediatamente ficou emocionado. Mal terminou de escutar a melodia, já disse que a música iria eternizar o poema, pouco conhecido até então. Estava totalmente certo em sua previsão.
Rosa de Hiroshima, lançada há 50 anos, é um dos casos muito bem-sucedidos de poemas que foram musicados e tornaram-se uma obra de maior alcance e impacto do que a original, pois ficaram cravadas na memória coletiva através da canção popular. É um exemplo vitorioso da parceria, não tão incomum, entre a música e a literatura. Esse foi o mesmo caso do poema José, de Carlos Drummond de Andrade, que inspirou o pernambucano Paulo Diniz a musicá-lo em 1972.
O poema, de estilo modernista, trazia versos livres, com ausência de padrão métrico; fazia uso de linguagem coloquial e de imagens cotidianas. Drummond utilizou, como metáfora, para o ser humano desamparado, um nome muito comum no Brasil, principalmente nas camadas sociais mais pobres. Publicado originalmente em 1942, o poema, na interpretação de Paulo Diniz, ganhou outro significado. A melodia foi bastante eficaz ao enfatizar, em acordes de tons menores, o caráter melancólico e desesperançoso da temática, como uma tradução sonora do beco sem saída em que o povo brasileiro se encontrava durante a ditadura militar.
“Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?”
Naquele mesmo 1972, o poeta piauiense Torquato Neto suicidou-se, no Rio de Janeiro, com apenas 28 anos, deixando um legado na poesia e na música. Em 1988, seu nome foi resgatado através dos versos de Andar andei, que foram recitados no trecho final da música Go Back, composta, sob influência do reggae, por Sérgio Britto, vocalista e tecladista dos Titãs. A faixa, presente na estreia da banda em disco (Titãs, de 1984), foi regravada, em 1988, com a inserção dos versos quase como um rap, no primeiro disco ao vivo do octeto, gravado parcialmente em Montreux.
“Não é o meu país / é uma sombra que pende / concreta / do meu nariz / em linha reta / não é minha cidade / é um sistema que invento / me transforma / e que acrescento / à minha idade / nem é o nosso amor / é a memória que suja /a história que enferruja / o que passou / não é você / nem sou mais eu / adeus meu bem / (adeus adeus) / você mudou / mudei também / adeus amor / adeus e vem.”
Outra obra musical que se conecta ao universo da poesia é Canteiros. Lançada há 50 anos, no disco de estreia de Fagner, Manera Fru Fru manera ou O último pau de arara, a música tem, no seu trecho inicial, uma adaptação do poema A marcha, de Cecília Meireles. Desde o começo da letra, “Quando penso em você, fecho os olhos de saudade…”, a música cativou o público e projetou o nome do artista iniciante, com apenas 23 anos. E se tornou um sucesso imenso.
Um texto, escrito pelo cantor, explicando a homenagem, não foi encartado no LP. E o que seria um tributo, acabou se tornando um imbróglio com a família da poeta carioca, falecida em 1964. As herdeiras processaram o compositor cearense, que também havia citado, mas de forma claramente incidental, Hora do almoço, de Belchior, e Águas de março, de Tom Jobim. Antes de ter sido feito um acordo judicial, Canteiros chegou a ser proibida de tocar no rádio e na TV. Mas isso não impediu que virasse um grande hit. E muitos ouvintes, até hoje, ainda consideram que a letra completa é o poema de Cecília. Eis o trecho que serviu como inspiração:
“Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudades;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos tristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me dá contentamento”
Mais um grande triunfo de Fagner, aventurando-se no campo da literatura, foi ter musicado Fanatismo (1923), de Florbela Espanca, poeta portuguesa que se matou em 8 de dezembro de 1930, aos 36 anos. Transformada em música, em 1981, virou um dos maiores sucessos do cantor – e, por tabela, da poeta. Foi uma surpresa para o grande público descobrir que o compositor não havia escrito aqueles versos, já que a canção, muito bem-sucedida, fez parecer que sim. Fanatismo pertencia ao oitavo álbum de sua carreira, Traduzir-se, cuja faixa-título também era um poema musicado, desta vez de Ferreira Gullar. Animado com a repercussão, no ano seguinte, o cantor musicou mais três poemas de Florbela Espanca, Fumo, Tortura e Frieza, mas sem o mesmo alcance da primeira música.
Diversos poemas da poeta portuguesa, considerada a maior de seu país, também ganharam canções, principalmente dentre os seus conterrâneos: o soneto Ser poeta, do livro Charneca em flor (1931), transformou-se, em 1987, pela banda Trovante, na canção Perdidamente. A banda de pós-punk Morituri, dos anos 1980, cantava trechos dos poemas Tédio, Desalento e Mais triste, do Livro de mágoas (1919). Em 2013, o projeto Senhora Dona Morte, da cantora Alexandra S, lançou, no disco Florbela, 18 sonetos musicados. Já a cantora Mariza, uma das maiores vozes do fado contemporâneo, interpretou os poemas Caravelas e Desejos vãos. E em 2001, a brasileira Nicole Borger havia musicado 15 sonetos, no disco Amar – Um Encontro com Florbela Espanca.
Outro poeta já morto, também resgatado pelo universo musical, foi o pernambucano Ascenso Ferreira. Falecido em 1965, teve, 10 anos depois, seu poema Vou danado pra Catende musicado por Alceu Valença e apresentado no Festival Abertura, promovido pela TV Globo, em São Paulo. Alceu conseguiu criar uma música que transmitia o estilo, ao mesmo tempo, regionalista e modernista do poeta. Além disso, realizou uma performance intensa e original, arregimentando uma superbanda: cinco ex-integrantes da Ave Sangria, Lula Côrtes e Zé Ramalho.
O pernambucano não ficou entre os três primeiros lugares (Djavan levou o segundo lugar, com Fato consumado), mas sua performance causou tanto impacto, que o artista acabou vencendo um prêmio inédito, de incentivo à pesquisa musical, e ainda causou forte impressão em quem o assistia pela TV. Em entrevista à revista Continente, em 2017, o baterista dos Titãs, pesquisador e apresentador Charles Gavin lembrou aquele momento, quando tinha apenas 15 anos: “O primeiro artista, de fato, que conheci de Pernambuco foi o Alceu Valença, com Vou danado pra Catende; era uma música muito forte”.
Nesse contexto de uma influência marcante da poesia na música popular brasileira, expressada mais fortemente a partir da década de 1970, Belchior lançou, em 1978, Divina comédia humana, que, no título, e na temática, fazia referência a dois livros, Divina comédia (1472), de Dante Alighieri, e Comédia humana (1842), de Honoré de Balzac. E ainda cita o soneto Ora (direis) ouvir estrelas (1888), de Olavo Bilac.
Leitor voraz, Belchior, falecido em 2017, costumava escrever letras longas e cheias de referências culturais, com maior ênfase na linguagem coloquial e no canto mais próximo da fala, sob uma economia melódica. “Minha melodia normalmente é um superapoio para a informação letrista, cuja densidade eu creio que é o ponto focal da minha música, não que eu valorize mais a letra do que a melodia. (...) A música popular tem também essa função; a música pode ser uma extensão da palavra, uma supervalorização da sonoridade da palavra. Tudo isso leva a um texto longo”, explicou o artista, em 1999, em entrevista ao programa Nossa Língua Portuguesa, do Professor Pasquale Cipro Neto.
Na mesma participação televisiva, o compositor lembrou que a figura da palavra como algo cortante (“Sons, palavras, são navalhas”), usada em Rapaz latino-americano (1976), é uma lembrança nordestina e ibérica. “Podemos nos referir a João Cabral, A escola das facas, mas essa da palavra cortante, que está em A palo seco (“Eu quero que esse canto torto/Feito faca/Corte a carne de vocês”), expressão a palo seco, ibérica, foi popularizada pelo poema de João Cabral, uma definição de ‘direto’ (franco, sem rodeios) do que quer dizer o canto puro, sem mistura, só a lâmina da voz”, explicou o cantor, para completar, “Eu sempre fui muito ocupado, no meu ofício, em pensar a canção como um espaço de ressonância da língua portuguesa”.
Outro compositor brasileiro com esse compromisso, Caetano Veloso sempre demonstrou uma profunda consciência da importância do peso de cada palavra em suas letras. Em 1981, no mesmo ano em que Fagner lançava Fanatismo, o baiano criava a composição O amor, uma adaptação do poema de Vladimir Maiakovski. A faixa foi lançada, naquele ano, no disco Fantasia, de Gal Costa: “Ressuscita-me/Lutando contra as misérias/Do cotidiano/Ressuscita-me por isso”.
Em 1991, no Circuladô, Caetano gravou a composição dele e de Milton, A terceira margem do rio, baseada no conto homônimo de Guimarães Rosa, de 1962. Esse disco traz composições influenciadas pela poesia concreta, especialmente a obra de Haroldo de Campos – cujo poema Circuladô de fulô foi musicado e inspirou o título do álbum. No Circuladô ao vivo (1992), o compositor recitou o seu poema Americanos, com acompanhamento musical. Para ele, “nunca chegou a ser uma canção. Não é um rap. Nem mesmo na medida em que Haiti e Língua são raps”.
Sete anos depois, no álbum Livro (1997), ele musicou parte do poema épico Navio negreiro, de Castro Alves. Seu canto inicia como se fosse o levantar e a rebentação de uma onda: “Stamos em pleno mar”. A gravação inclui um trecho declamado por Maria Bethânia, mestra na arte de recitar. Três anos depois, no disco Noites do Norte (2000), Caetano pôs música no texto de outro abolicionista, desta vez, o pernambucano Joaquim Nabuco. E não era um poema… Portanto, seu trabalho foi mais desafiador.
“Terminei musicando, coisa que me parecia muito difícil, porque era um texto em prosa, reflexivo, mas com um certo tom lírico”, explicou o artista em entrevista à Continente, no número 1 da revista, em janeiro de 2001. A interpretação começa com a frase “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, extraída do livro Minha formação (1900), do político, escritor e diplomata. O resultado ficou com ares de musical, a bem da verdade. Mas o registro tornou-se memorável, pela rara fusão entre literatura, música e história, e valeu ao baiano o título de Cidadão de Pernambuco, concedido pela Alepe em 21 de março de 2001.
Caetano já dissera, em 1989, na canção Outro retrato, do disco O estrangeiro (título, por sua vez, inspirado no livro de Albert Camus), que sua música vinha “da música da poesia de um poeta João que não gosta de música”. Referia-se a João Cabral de Melo Neto. Por não gostar de música e ter receio de interferências no espírito de sua obra, o poeta pernambucano resistiu em aceitar que Chico Buarque musicasse o poema Morte e vida severina (1955).
A ideia tinha sido do diretor e escritor Roberto Freire, que montou a peça em 1965, em São Paulo. João Cabral ficou emocionado, quando o espetáculo aportou em Lisboa, cidade onde trabalhou como diplomata. A partir de então, o poeta pernambucano passou a afirmar que só lembrava de seu próprio texto ouvindo também, na sua cabeça, a melodia criada por Chico. Quem não se lembra dela ao ler um verso como “Não é cova grande, é cova medida / É a terra que querias ver dividida”? Essa é a maior prova do trabalho bem-realizado por Chico. No entanto, houve quem dissesse que o mérito do compositor foi conseguir extrair o que já havia de musicalidade no poema.
Isso talvez possa ser explicado pelo compositor e professor Luiz Tatit, nesse trecho do livro Semiótica da canção (2003): “A fala está presente, portanto, no mesmo campo sonoro em que atuam a gramática do ritmo (da música) fundando os gêneros e a gramática da frequência formando a tonalidade. A presença da fala é a introdução do timbre vocal como revelador de um estilo ou de um gesto passionalista no interior da canção. Se o ouvinte chegar a depreender o gesto entoativo da fala no ‘fundo’ da melodia produzida pela voz, terá uma compreensão muito maior do que aquilo que se ouve no canto”.
Chico, então estudante de arquitetura, tinha apenas 21 anos quando realizou aquele feito. Além de musicar, contribuiu com a encenação. “Ninguém no Rio tinha ouvido falar nele; ninguém iria, nunca mais, esquecer seu nome”, escreveu o crítico Yan Michalski, no livro Pequena enciclopédia do teatro brasileiro. Em 1966, com A Banda, o compositor ganhou a votação do júri popular do II Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, e o coração do Brasil, tornando-se “a única unanimidade nacional”, segundo Millôr – a passagem do tempo e os ânimos políticos acirrados no país, no entanto, iriam contrariar a frase do Filósofo do Méier.
Mais do que exemplos bem-sucedidos de poemas musicados, essas foram demonstrações da intrínseca ligação entre música e literatura, reacendendo a antiga discussão, ainda longe de um consenso: afinal, letra de música é poesia ou não? O compositor e pesquisador José Miguel Wisnik, no documentário Super Libris (SescTV), analisa a temática: “Se a gente pensar o que é poesia… E eu acho que poesia é arte da palavra. Então, letra de canção é arte da palavra. E a arte da palavra poética, ela teve, ao longo dos tempos, diferentes suportes. Tradicionalmente, o suporte dessa arte da palavra é a voz. E a voz entoada, ritmada, a voz cantada. Então, na poesia antiga, grega antiga, a poesia lírica, que hoje a gente conhece nos textos, em todo suporte da página, e a gente admira, cultiva, cultua, ao longo dos milênios, como poesia, aquilo era originalmente canção”.
Segundo o ensaísta, “mesmo aquilo que não era poesia lírica, na época, era entoada, era ritmada. De certo modo, era ritmo e poesia, era rap. Então, nesse sentido, a arte da palavra migra. A palavra é um objeto diferente de um quadro, ela escapa, e depois ela se acomoda na página. Com isso, ela ganha outras, vamos dizer, dimensões, outros aspectos. Mas, às vezes, ela sai de novo da página e volta para a voz. Então, por isso, essa pergunta, feita numa situação brasileira, nos leva a dizer que a poesia, a letra de canção, não sendo necessariamente obrigatoriamente poesia, ela atingiu muitas vezes um nível de arte da palavra, que faz com que a gente diga que ela é alta poesia”. E conclui: “A letra de música é uma arte da palavra que está, vamos dizer, surfando na melodia e no ritmo e se volta para isso e seu interesse está inseparável disso”.
Partindo de uma observação de Luiz Tatit, que prefere dizer que letra de canção é aquela que tem uma ligação com a entoação, Wisnik faz uma observação: “Isso tem a ver com o fato de que, quando a gente fala, a gente melodiza; que a fala tem melodia, tem desenhos e tal, e que o cancionista, às vezes sem conhecer nada de música, de harmonia, de música, no sentido da linguagem musical escrita, ele tem uma intuição do que é a curva melódica de um samba como entoação”. E exemplifica com o samba Nem é bom falar, de Ismael Silva. O sambista parou nos versos “Nem tudo que se diz / Se faz / Eu digo e serei capaz”. Capaz do quê? Ele só continuou a composição quando completou a curva entoativa e ascendente da melodia, que já prometia um grande samba.
Se existem casos bem-sucedidos (ou não) de poemas que foram musicados, há os de livros que inspiraram discos e músicas, como Os meninos da Rua Paulo (1991), da banda Ira!, cuja faixa-título é inspirada no romance juvenil de Ferenc Molnár, lançado em 1907; The Raven (2003), de Lou Reed, baseado na obra de Edgar Allan Poe; The ghost of Tom Joad (1995), de Bruce Springsteen, feito a partir do clássico As vinhas da Ira (1939), de John Steinbeck; Geni e o Zepelim (1979), de Chico Buarque, baseada no conto principal de Bola de Sebo e Outros contos da guerra (1880), de Guy de Maupassant.
Há uma série de outros exemplos: Tom Sawyer (1981), do Rush, inspirada no clássico As aventuras de Tom Sawyer (1876), de Mark Twain, que, no Brasil, virou tema de abertura da série Profissão perigo, do herói MacGyver, um agente secreto que conseguia abrir portas ou desativar bombas com um clipe, um chiclete e/ou uma tampa de caneta. Outro clássico da literatura mundial que traz um protagonista jovem e rebelde inspirou outra bela composição, também de 1981. Caçador de mim, sucesso na voz de Milton Nascimento, composta por Sérgio Magrão (baixista do 14 Bis) e Sá (da dupla com Guarabyra), foi criada a partir da história de Holden Caulfield, do Apanhador no campo de centeio (1951), de JD Salinger.
Sob influência da namorada, a cantora Marianne Faithfull, Mick Jagger conheceu muitas obras literárias, tais como O Mestre e Margarida. A sátira russa, de Mikhail Bulgakov, sobre a passagem do Diabo pela União Soviética, escrita durante o período stalinista e lançada somente em 1967, impulsionou o músico a escrever Sympathy for the Devil (1968), grande sucesso dos Rolling Stones. O vocalista também já mencionou Charles Baudelaire como inspiração.
Outro livro de temática soturna gerou uma nova obra musical. Os Ramones basearam-se em O cemitério (1983), de Stephen King, para criar Pet Sematary. Grande fã da banda de punk rock, o escritor norte-americano a convidou para compor uma música para o filme Cemitério maldito, de 1989 – a canção acabou se tornando um dos maiores hits do quarteto nova-iorquino.
Música icônica de Elton John, Rocket Man, foi inspirada no conto The Rocket Man, de Ray Bradbury, do livro The Illustrated Man (1951), com 18 contos que exploram o conflito entre a tecnologia e a natureza humana.
Obras de ficção científica muito influentes e, normalmente, comparadas por suas visões distópicas de futuro, são Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, e 1984 (1949), de George Orwell. Enquanto a primeira inspirou Admirável gado novo (1979), de Zé Ramalho, Admirável chip novo (2003), de Pitty, e o álbum Brave new world (2000), do Iron Maiden (banda que, a propósito, também compôs diversas outras músicas a partir de vários livros de ficção); a segunda deu origem a um álbum homônimo de Hugh Hopper (ex-baixista da banda de rock psicodélico Soft Machine), em 1973, ao disco Diamond dogs (1974), de David Bowie, que inclui a faixa 1984, e à música 2+2=5, do álbum do Radiohead Hail to the Thief (2003), que abriga outras referências literárias.
A revolução dos bichos (1945), obra anterior de Orwell, também viria a inspirar o álbum Animals (1977), do Pink Floyd. A banda britânica também se inspirou na ficção científica Childhood ‘s end (1953), de Arthur C. Clarke, para criar a canção homônima que foi seu primeiro sucesso nas rádios norte-americanas, em 1972.
A literatura, que ajudou a criar músicas e álbuns, em Pernambuco, nos anos 1990, contribuiu para a concepção de um movimento, o Manguebeat, tendo como referência a obra do médico, geógrafo, cientista social e escritor Josué de Castro. Foi importante para a consolidação das ideias criadas por Chico Science o romance Homens e Caranguejos (1967), do ativista contra a fome, inclusive mencionado no Manifesto Caranguejos com Cérebro (1992), redigido por Fred Zero Quatro – a propósito, o músico, inspirado no livro 2455 Cela da Morte, de Caryl Chessman, compôs Homero, o Junkie, faixa do Samba Esquema Noise (1994), primeiro disco da Mundo Livre S/A.
São muitos exemplos de discos e músicas inspiradas em livro, mas o mais famoso talvez seja Wuthering Heights. A ideia de criar a canção surgiu quando a adolescente britânica Kate Bush assistiu ao finalzinho da série homônima, exibida pela BBC. Ela já compunha desde os 11 anos. Para captar o mood da história, pegou o livro de Emily Brontë para ler e criar a canção. Compositora, multi-instrumentista, produtora e cantora, ela foi descoberta, aos 16 anos, pelo guitarrista do Pink Floyd, David Gilmour, que a apresentou à gravadora EMI.
Quando Kate surgiu, em plena era disco, com uma música completamente estranha aos padrões da época, parecendo ter saído dos contos de fada, o público e a crítica ficaram impressionados com seu visual, suas danças esquisitas e sua voz soprano, extremamente aguda. Transformou-se rapidamente em um ícone feminino da música, inspirando várias cantoras, de Björk a Lady Gaga, sendo a primeira artista a usar o sintetizador fairlight (que revolucionou a música na década de 1980) e o microfone headset no palco, para deixar os braços livres para sua dança contemporânea.
Além de ser britânica como a autora do livro, a autora da canção guardava outra coincidência com a conterrânea, ambas nasceram em um 30 de julho, com 140 anos de diferença: 1818 e 1958. Se Emily morreu, aos 30 anos, em 1848, sem desfrutar da imensa repercussão que teria o seu livro, Kate, em pleno megassucesso internacional, abandonou sua primeira turnê, em 1979, com apenas seis semanas de shows, e se tornou reclusa desde então – quase uma JD Salinger da música.
O ostracismo só fez aumentar a lenda em torno de sua figura. E ela continuou a usar clássicos da literatura ao longo de sua carreira, incluindo Ulisses, de James Joyce, para Flower of the Mountain (2011) – a música, antes chamada The Sensual World (1989), só teve autorização para uso do solilóquio de Molly Brown como letra após mais de 20 anos de espera.
A relação entre música e poesia é antiga, talvez anterior ao Trovadorismo Medieval, com sua poesia cantada, ou mesmo a uma Antiguidade Clássica, com o canto de tragédias. O Trovadorismo, sobretudo a partir dos séculos XI e XII, consistia em poesia lírica e satírica, escrita pelos trovadores, que viajavam para entoá-la, sendo acompanhados por instrumentos musicais e dança. É considerado o primeiro movimento artístico da poesia europeia. No Brasil, esse hibridismo entre a linguagem poética e a musical, ganhou força no início do século XX, com compositores como Villa Lobos, que musicou poemas de Manuel Bandeira, como O anjo da guarda e Debussy, composição apresentada na Semana de 1922.
Essa ligação entre música e literatura vem fazendo com que muitos compositores recebam honrarias e prêmios antes atrelados apenas a escritores. Eis algumas dessas aclamações: em junho de 2011, Leonard Cohen ganhou o Príncipe das Astúrias; em abril de 2022, Gilberto Gil tomou posse na Academia Brasileira de Letras; em abril de 2018, Kendrick Lamar conquistou um inédito Pulitzer para o rap – o prêmio, vinculado à literatura e ao jornalismo, também premia músicos, mas do jazz e da música erudita.
O ápice do reconhecimento dessa relação entre o universo musical e o literário se deu em outubro de 2016, quando Bob Dylan foi anunciado como vencedor do Prêmio Nobel de Literatura. O compositor, a propósito, que escreveu livros como A filosofia da canção, que vai ganhar publicação neste mês no Brasil pela Companhia das Letras, já escreveu música inspirada em livro — Hurricane, com uma letra extensa de 99 versos, baseada na autobiografia do boxeador Rubin “Hurricane” Carter, intitulada The sixteenth round, narra a luta por inocência da acusação de assassinato.
“Eu estava em turnê quando recebi essa notícia surpreendente, e levei mais do que uns poucos minutos para assimilar adequadamente a ideia. Comecei a pensar em William Shakespeare, a grande figura literária. Imagino que ele se considerasse um dramaturgo. A ideia de que estivesse escrevendo literatura não podia ter lhe passado pela cabeça. Suas palavras eram escritas para o palco. Destinadas a ser pronunciadas, e não lidas”, escreveu Dylan, no discurso de agradecimento, lido por Patti Smith, outra cantora e compositora aficionada por livros – inclusive, escritora. “Certas coisas não mudam nunca, nem em 400 anos. Nem uma única vez eu tive tempo de me perguntar, ‘Será que as minhas canções são literatura?’.”
Considerado o Poeta do Rock Nacional, Cazuza deixou canções de letras marcantes e escreveu poesias que não se tornaram canções. Uma delas foi destinada à sua avó materna e acabou na lápide dela. Com ciúme do amor do neto, a avó paterna lhe pediu um poema e ele, que tinha 17 anos, assim o fez e intitulou singelamente como Poema. A senhora guardou o presente durante anos, mesmo após a morte do neto, em 1990. Quando ela faleceu, em 1999, uma caixa foi entregue a Lucinha Araújo. Ao ler o texto inédito do filho, ela convidou Frejat para musicá-lo e Ney Matogrosso para interpretar a canção que se tornaria a sua mais tocada nas rádios e no Spotify. E sempre que ela é ouvida, a magia da arte faz unir novamente, em um território só dela, três artistas, e o passado “é iluminado pela beleza do que aconteceu há minutos atrás”.