Priscila Prade wide

Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e o dó fez-se ré etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera…”, disse o tenor italiano Marcolini ao amigo Bento Santiago, mais conhecido como Bentinho, personagem e narrador de Dom Casmurro.

Desde que foi lançado em 1899, o livro de Machado de Assis parou nas mãos de incontáveis leitores, ao longo de mais de um século. Um deles foi o jovem alagoano Djavan Caetano Viana, cujo primeiro nome, que teria aparecido em um navio imaginário no sonho de sua mãe quando estava grávida dele, batizou-o sucintamente na sua carreira artística. O drama de Bentinho, que mais parece a frase da canção Se – “Você disse que não sabe se não / Mas também não tem certeza que sim” –, foi o primeiro livro que marcou o futuro compositor, um leitor habitual, que registrou o seu prazer pela leitura na música Nem um dia, aquela que começa assim: “Um dia frio / Um bom lugar pra ler um livro…”.

Primeiro, note-se que é “Nem um dia” e não “Nenhum dia”, e também que, na letra, o autor encontrou o ambiente perfeito para a leitura. Isso, para ele, começa pelo clima, o frio. Nascido em Alagoas, com passagem rápida pelo Recife, e morador há décadas do Rio de Janeiro, Djavan tem poucas oportunidades de encontrar uma temperatura amena. Dias de calor, de fato, não sugerem uma circunstância propícia para a leitura. A não ser que haja um ar-condicionado potente ou um bom ventilador à disposição.

Do contrário, as mãos terão que estar ocupadas com algo para se abanar, enxugar o suor do rosto e/ou para ingerir água frequentemente. Estudos atestam que, no calor, o corpo humano libera mais testosterona, hormônio que estimula a irritabilidade e a impulsividade. Logo, a paciência e a tranquilidade, dois dos atributos necessários para uma leitura aprofundada, passam longe desses efeitos. Pesquisas apontam, inclusive, que os índices de violência aumentam em dias quentes. Então, é mais provável que, nesses dias calorentos, um livro tenha mais chance de ser mais arremessado do que lido.

Escolhida a temperatura certa, que deve ficar entre o ideal e o tolerável de cada um, e não as temidas ondas de calor que ameaçam o restinho de sossego das mulheres em menopausa e dos seres humanos na face da Terra, chega o momento de escolher o tal “bom lugar pra ler um livro”. Tentamos, por diversas vezes, descobrir, com o próprio Djavan, que lugar seria esse, afinal de contas. Também tínhamos a intenção de conhecer mais sobre a sua ligação com a literatura. Porém, talvez seja mais fácil aprender japonês em braile do que conseguir uma entrevista com o cantor.

No entanto, pistas foram deixadas na internet. Durante a pandemia, o músico havia lançado a campanha #LendoComDjavan, em que sugeria, em posts no seu perfil no Instagram, seus livros preferidos, como o citado Dom Casmurro, uma leitura marcante em sua vida. “Em busca daquela narrativa originalíssima, elegante, sofisticada (…) Ele é sem dúvidas um dos melhores escritores do mundo e, graças a Deus, é brasileiro!”, disse, em vídeo, em junho de 2021.

Dentre os títulos prediletos de Djavan, estão Crime e castigo, de Dostoiévski, Escravidão, de Laurentino Gomes, e o fenômeno Torto arado, de Itamar Vieira Junior. O artista também incentivou os seus fãs/seguidores/leitores a compartilharem posts sobre os seus livros prediletos a partir da tal hashtag. Durante uma semana, a cada vídeo postado, o TikTok doou R$1 para a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (@redenacionalbce) e ao Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (@ibeacoficial).

Paralelamente à nossa insistência para uma conversa com o compositor, fomos em busca de outros amantes — palavra que causaria arrepios em Bentinho — da leitura para saber quais são os seus livros prediletos e lugares preferidos para ler. Podemos começar com uma companheira de profissão de Djavan, a cantora, compositora, modelo e escritora Vanessa da Mata, autora do romance A filha das flores (Cia das Letras, 2013).

A artista do Mato Grosso também menciona o autor de Dom Casmurro. “Ah, muitos livros me marcaram. Quando eu era muito jovem, com 12 anos, eu li quase todos os livros de Machado de Assis. Minha família não lia, não tinha esse hábito. Na minha cidade não existia biblioteca. Acho que o livro que me marcou foi Helena, o primeiro livro do Machado que li. Depois vem O Alienista, pela história curiosa. Também me marcou o Grande Sertão: Veredas, porque se passa num lugar que tem um linguajar próximo do meu, do Mato Grosso. Então são muitos livros maravilhosos. Inclusive de literatura latina mesmo, não só brasileira”, revela Vanessa.

A cantora diz que lê livros onde a sua cabeça pede: “Eu leio em café, em livraria, no quarto, na sala. Às vezes, vou pra algum lugar que está barulhento, coloco o fone de ouvido e leio,
e é uma delícia tomar café lendo. Não tem muito lugar escolhido e funciona bem pra mim, porque acho que não me distrai tanto. Quando eu engreno, depois da primeira página, aí pode acontecer muita coisa e eu não percebo, eu já tô dentro do livro”.

Se Vanessa gosta de ler em diversos ambientes, mesmo públicos, o escritor, historiador e compositor Luiz Antonio Simas, frequentador de bares e rodas de samba, costuma ler nesses locais, os quais o imaginário coletivo vincula imediatamente à boemia. “Gosto de ler, especialmente poesia e prosa literária, em botequins vazios, no meio da semana e durante o dia. A sensação que tenho é a de que a vida está acontecendo, ao mesmo tempo, nos livros e nas ruas”, conta o autor e professor, acrescentando que um livro que o marcou foi Os velhos marinheiros ou O capitão-de-longo-curso (1961), de Jorge Amado. “Porque me mostrou que livros podem ser profanos e ruas podem ser sagradas.”

Também frequentador da sagrada vida cultural e acadêmica do Rio de Janeiro, o escritor, filósofo e compositor Chico Bosco, dono de uma riquíssima biblioteca, afirma que o lugar apropriado para ler vai depender de cada modalidade de leitura. “Livros de trabalho (estudo, pesquisa, encomenda) solicitam um ambiente igualmente de trabalho (escritório, biblioteca). Já livros lidos puramente por prazer, sem compromissos com produtividade, podem ser lidos em qualquer lugar: cama, banheiro, metrô, consultório médico…”, afirma Bosco, acrescentando que muitos livros o marcaram, mas, para citar apenas um, destacaria um de Roland Barthes, o autor que mais profundamente o influenciou e por mais tempo. “Tendo que escolher um livro dele, eu ficaria com O prazer do texto (1973).”

Segundo a cantora e compositora Zélia Duncan, o “lugar apropriado é o espaço interior”: “Pra mim, sem resquício de música por perto. A música me sequestra, a literatura paga o resgate!”. Para a artista carioca, o livro que mais a marcou foi Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves. “É arrebatador e completamente brasileiro. Portanto, africano. Precisamos desse livro.”

Esse também é um dos livros preferidos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, lido pelo político durante seus 580 dias de prisão, entre abril de 2018 e novembro de 2019. Vencedor do Prêmio Casa de las Américas de 2007, foi o primeiro livro que Lula recebeu, na carceragem da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, para iniciar as leituras que o ajudariam não somente a passar o tempo, mas a diminuir o tempo da pena – a defesa de Lula não precisou utilizar o recurso em que um detento ganha quatro dias de desconto na sanção penal para cada livro que ler e sintetizar em uma resenha. Ao notar que o romance histórico de Ana Maria Gonçalves tinha 952 páginas, ele se questionou quanto tempo ficaria preso.

Em maio de 2019, cinco meses antes de ser libertado, Lula divulgou, em uma carta, lida no Salão do Livro Político, na PUC-SP, pelo ator Sérgio Mamberti, as companhias literárias que o acompanharam em Curitiba. Uma delas foi Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. “Nestes 13 meses de quase solidão (…) tenho lido muitos livros. Cavalguei com Riobaldo e Diadorim pelas veredas do grande sertão de Guimarães Rosa. Cruzei o Atlântico em navio negreiro ao lado de Luísa Mahin, no extraordinário romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves.”

Foram, ao todo, mais de 40 livros lidos, especialmente biografias. Dentre elas, as de Tiradentes, Fidel, Mandela, Prestes, Chávez, Putin e Marighella. Outras leituras preferidas na prisão: “O amor nos tempos do cólera, de García Márquez; A elite do atraso, de Jessé Souza; A fome, de Martín Caparrós; O petróleo, de Daniel Yergin; Sapiens, de Yuval Harari, e Escravidão, de Laurentino Gomes”. Na época, disse Lula: “Ler é um ato político – todo livro é político, seja ele de poesia, romance, contos, filosofia, sociologia, economia ou ciências políticas (…). É principalmente graças aos livros que, quando a justiça for restaurada neste país, sairei da prisão sabendo mais do que quando entrei”.

Foi também na prisão, em 1970, que a ativista norte-americana Angela Davis aprofundou suas leituras e passou a redigir textos que seriam publicados em sua autobiografia, lançada em 1974. Colocada numa área de isolamento, Angela enfrentou a solidão e a violência no encarceramento, que durou 18 meses, escrevendo cartas e um diário. “Eu estava na solitária, a alguma distância de onde a maioria das mulheres era mantida. Era solitário, muito solitário. Eu lia muito, eu escrevia muito. Segui o exemplo de outros prisioneiros, como George Jackson. Fui capaz de criar uma certa esfera do que se pode chamar de liberdade, dentro do contexto daquele confinamento”, afirmou a escritora em Libertem Angela Davis (e todos os presos políticos), documentário de 2012.

A propósito, a obra de outra ativista negra, Quem tem medo do feminismo negro?, da filósofa brasileira Djamila Ribeiro, é um dos livros que estão na lista dos indicados por Djavan, o responsável por despertar a enquete do Pernambuco entre leitores famosos e que gerou este texto. “Djamila é uma autora que tem se revelado uma voz muito poderosa. Precisamos ouví-la.” No fundo musical do vídeo do artista com suas recomendações, está a música Nem um dia, cuja letra, aliás, dá a entender, que, apesar do “bom lugar”, o “pensamento lá em você” não permitiu que a leitura fosse concretizada.

Ao longo de uma carreira de quase 50 anos, Djavan vem nos presenteando com canções como essa e consegue uma façanha. Mesmo sendo um artista de muita complexidade, na música e na letra, mesmo trabalhando em um país dominado pelo funk, brega, sertanejo e piseiro, é um dos cânones da música popular brasileira que mais frequentam o ranking dos maiores arrecadadores de direitos autorais no país. E em alguns anos, chega a alcançar o primeiro lugar, segundo o ECAD, principalmente no quesito “música ao vivo em bares e restaurantes”.

Embora os números confirmem que, fato consumado, ele é mesmo um artista extremamente popular em todas as classes sociais do país, consegue isso sem sequer fazer concessões às variações e tendências do mercado fonográfico. Mantém-se fiel ao estilo que criou para si, e sem imitadores à altura, com uma obra sofisticada, melodias e harmonias complexas, que poucos conseguem tocar no violão.

Uma das peculiaridades da obra de Djavan são as letras que fogem ao aclamado “conteudismo”, comum em autores da chamada MPB, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gonzaguinha e Belchior, com letras que abordam assuntos específicos, acontecimentos, situações e pessoas. O alagoano prefere letras com temas abstratos, como os sentimentos e sensações provocados pelo amor e a solidão.

E seus versos, quase surreais, têm divisões rítmicas incomuns, como Serrado: “Se o senhor me for louvado / Eu vou voltar pro meu serrado / Por ali ficou quem tempe/rou o meu amor e seme/ou em mim essa incrível saudade / Se é por vontade de Deus / Valei, valei”. E há outras mais intrigantes, que são pura poesia, como o refrão de Açaí: “Açaí / Guardiã / Zum de besouro / Um ímã / Branca é a tez da manhã”.

Essa música, a propósito, já criou polêmica na internet, quando passou a circular uma teoria de que as letras de Djavan não têm sentido – teoria, aliás, questionada pelo próprio artista em depoimento a Charles Gavin, no programa O som do vinil, exibido em 2011, sobre o disco Luz (1982), que contém Açaí. “Houve um período que se acostumaram a falar que a minha letra tinha essa particularidade, que às vezes eu uso a palavra só por causa do som. Usaram muito um verso meu para determinar que a minha letra, às vezes, era meio nonsense e tal. Por exemplo, um verso de Açaí chegou a ser citado pelo (jornalista) Artur Xexéo para nominar um prêmio (Prêmio Zum de Besouro), que ele dava a coisas nonsense, a coisas estranhas.”

Djavan argumentou que “não há nenhuma pessoa que viva no Norte do Brasil que não entenda que o açaí é a fruta que faz com que a subsistência daquelas pessoas esteja garantida, porque é abundante, barata e muito nutritiva”. E seguiu: “Com ela, se faz tudo. Por isso, ‘açaí, guardiã’. Todo nortista entende esse verso. ‘Zum de besouro, um imã’. Para todo mundo que gosta da natureza, é impossível não ouvir um zumbido qualquer e não se interessar por quem o está produzindo. Por isso, um ímã. E ‘branca é a tez da manhã’, se você acordar às 5h da manhã num dia meio nublado, a vida está branca. Não há nada de nonsense nesse verso. O que há é a falta de alcance de alguns críticos que nos pune pela sua ignorância. Eu não posso fazer nada. Mas o verso está ali, é lindo”, disse Djavan, caetaneando, com o justo autoelogio, o que há de (muito) bom.

[Leia aqui a segunda parte da reportagem, A literatura através da canção]