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Não é de estranhar que uma das mais belas respostas literárias à dinâmica política da hora presente no Brasil tenha retomado surda, mas estrategicamente um modelo paradigmático na constituição da literatura brasileira - o das canções do exílio. Trata-se de poema de Angélica Freitas, que traz apenas uma indicação de local e data - “Berkeley, 14 de maio de 2016” - e foi publicado isoladamente, e sem qualquer comentário suplementar, no blog da revista Modo de Usar.

A rigor sem título, a página em que foi divulgado é encabeçada, no entanto, por foto de Caco Argemi na qual se vê “Carga de Cavalaria, com espadas em punho, pelo 4º Regimento de Polícia Montada”, ação que se sabe foi realizada na noite da sexta-feira 13 de maio de 2016, na Cidade Baixa, em Porto Alegre, durante manifestação contra o impeachment de Dilma Rousseff. A cena, descrita de modo mais explícito apenas na última estrofe, funciona, todavia, como referência visual constante que, pela simples presença na página, assim como no noticiário deste período no país, parece assombrar os demais segmentos poemáticos, sobrepondo silenciosamente a ação policial local a todas as demais, tematizadas ao longo do poema, que apontam, ao contrário, para pontos diversos do globo terrestre.

As três primeiras estrofes do poema guardam estrutura semelhante. Iniciam com a repetição da mesma expressão - “quando você viu” -, seguindo-se, a ela, a descrição de situações distintas de confronto, nas quais invariavelmente se sublinha a distância entre o sujeito (diante da tv) e as cenas que vê. Na primeira delas, mencionam-se imigrantes - “aquelas pessoas em fila na chuva/à noite numa estrada/na fronteira de um país que não as queria”. Os pronomes indicando, propositadamente, aí, tratar-se de gente, estrada e país indeterminados. Na segunda estrofe, veem-se “bombas/caírem sobre cidades distantes”, ressaltando-se, mais uma vez, tratar-se de “casas e ruas/tão sujas e tão diferentes”. No segmento seguinte, assiste-se, na praça de país estrangeiro, à polícia “partir pra cima de manifestantes/com bombas de gás lacrimogêneo”. Aí já se nomeia diretamente um dos polos da alteridade característica das canções do exílio – “país estrangeiro”. E se constrói, assim, via repetição, um “lá” ao qual se oporá o “ali fora” que vai se desenhando ao longo das três estrofes seguintes, nas quais se registra, a princípio, um alheamento, uma negação, enfatizados verso a verso – “não pensou duas vezes”, “nem trocou de canal”, “não reparou o que vinha”, “não interpretou como sinal”, “não precisou estocar mantimentos”. Até que, no último segmento do poema, a violência se avizinha e se passa do alheamento ao espanto: “e o barulho de bomba é ali fora/e a polícia parte pra cima dos teus afetos/munida de espadas, sobre cavalos”.

Ao final, a foto de Caco Argemi meio que adentra, então, o poema e a delimitação espacial, a figuração à distância do país, a oposição “cá versus lá”, próprias às canções do exílio, passam a sublinhar agora uma sobreposição de quadros de violência, e mais convergências do que costumavam sugerir as territorializações da nacionalidade exigidas pelo imaginário geográfico oitocentista. A escala global das cenas bélicas de exclusão que se sucedem no texto de Angélica Freitas anunciando, em sucessão analógica, o espanto e a tomada de consciência da dimensão local de um registro do mundo realizado até então indiretamente (via tv) e a voo de pássaro. Desse modo, de cidades distantes, desconhecidos em fila numa inspeção de fronteira, manifestantes na praça de um país estrangeiro, se passa para um “ali fora” que subitamente se presentifica, fazendo “a colher cair da boca”, e figurando-se, assim, prosaicamente, a força com que se impõe a imersão na própria experiência histórica.

É em diálogo com a hora presente que se realizam necessariamente o trabalho artístico e a investigação crítica, mas situações de desestabilização de uma institucionalidade democrática, como a que vinha sendo reconstruída há três décadas no Brasil, são de molde a intensificar esse engajamento. E impõem igualmente uma intensificação da relação entre cultura e política na produção brasileira dos últimos anos. Em particular desde a percepção mais clara dos desdobramentos ultraconservadores das jornadas de junho de 2013, desde a exposição do grau de divisão ideológica do país, e do potencial de virulência nela entranhado, manifesto não apenas durante períodos eleitorais, mas no dia-a-dia mesmo, e exacerbado, espraiado por todos os aspectos da vida e da convivência, sobretudo nos meses que antecederam e nos que vem se seguindo ao impeachment.

Revisitar, nesse sentido, as canções do exílio, que funcionaram como fator de afirmação ou indagação sobre a nacionalidade no Brasil oitocentista e em muitas de suas retomadas modernas, aponta não apenas para um movimento de tomada crítica de consciência da própria circunstância, para o desconforto com relação ao país e à imposição de nova/velha ordem presentes no poema de Angélica Freitas. Mas sugere também exílios literais, desorientações. Como na geografia propositadamente difusa de trabalhos como “Perabé”, de Luiza Baldan, ou na sobreposição temporal de caravelas e trajes coloniais a figuras contemporâneas, procedimento que distingue o trabalho de Arjan Martins. Ou como nos desdobramentos do eu (“Eu é um rinoceronte um hipopótamo -/de repente eu estava em todos os lugares/em todos os lugares/e numa caixa (...)”, lê-se em “Grandes mamíferos”, de Franklin Dassie), nos exílios internos (“mim quem/nin guém”, diz-se em poema recente de Chacal) que não à toa convidam a processos de formalização pautados por metódicas fissuras espaço-temporais e figurais.

Observando-se a produção cultural brasileira mais recente, chamam de fato a atenção, dentre as configurações que parecem se impor, pela invenção e pelo vigor do diálogo com a hora histórica, aquelas pautadas por essas formas diversas de convergência e cisão e por campos expressivos tensos, por vezes (direta ou indiretamente) bélicos, como nas imagens de explosões da artista mineira Lais Myrrha, por vezes em franca devastação, como a que domina o “Livro do cão”, de Carlito Azevedo. São essas as configurações que procuro observar brevemente aqui sob a forma de quatro séries distintas – a dos presentes imprecisos, a dos jogos entre vozes fictícias e “a vero”, a dos muros (como matéria e limite) e a dos cães (mortos, ferozes, vadios), que funcionam ora como duplos autorais, ora como antagonistas que, inclementes, parecem anunciar ou efetivar sitiamentos progressivos do exercício da cidadania ou de simples movimentos de ir-e-vir.

Presentes imprecisos

Desde o início do processo de impeachment de Dilma Rousseff, uma questão – a da repetição histórica – tem se mostrado crucial nos esforços de compreensão do presente. Sobretudo nas muitas comparações entre a ditadura civil-militar de 1964 e o aparato judicial e político de hoje. Mas, também, entre o golpe palaciano que instituiu a República Velha e as articulações que conduziram a um impeachment sem crime de responsabilidade. E entre o que se viveu no Brasil e a sucessão de processos de desestabilização de governos de esquerda ou centro-esquerda na América Latina, desde 2002-2003, na Venezuela, mas também no Haiti (2004), na Bolívia (2008), no Equador (2010), três deles (Honduras, Paraguai, Brasil) resultando na deposição de chefes de estado. Os esforços analógicos têm se voltado, igualmente, para o exame do emprego de uma retórica política recontextualizada pelos que ocuparam o aparelho do Estado e pela grande imprensa – o que gerou a percepção de curiosas reedições de capas e matérias de jornais dos anos 1960 em outras de agora, entre a vassoura janista e suas refigurações contemporâneas, entre versões quase literais de trechos (em especial a multiplicação da imagem do mar de lama) extraídos de Carlos Lacerda, mas apagando-se o contexto original antigetulista ou antijanguista. Um rastreamento de repetições que – tendo como ponto de fuga “O 18 Brumário”, de Marx – aponta simultaneamente para o caráter farsesco dessas duplicações (que apenas imaginam ainda crer em si mesmas, como observa Paul Laurent Assoun, e, no entanto, exigem “do mundo a mesma ficção”) e, por outro lado, para a impossibilidade de reedições tais quais diante de condições históricas e materiais distintas.

Se a estratégia analógica pretende expor o descompasso dessas refigurações, aponta igualmente para a necessidade de uma tomada de consciência das singularidades presentes, mesmo que inevitavelmente assombradas por operações diversas de restauração conservadora, dentre elas a perspectiva de revogação de direitos individuais e trabalhistas, assim como de conquistas pós-Constituição de 1988 da sociedade civil (dentre elas o acesso mais amplo à educação e à saúde). Uma tirinha recente de André Dahmer, da série “Os Malvados”, sintetizou essas tensões temporais em três quadros, marcados pelo recuo histórico, mas legendados por título que aponta para a agenda política imediata. O primeiro deles é de cunho analógico: “O passado voltou ao Brasil”. O segundo conduz a uma discriminação sobre o que de fato se permite voltar: “Trouxe alguma lembrancinha do exterior?”. E o último deles explicita, em resposta brevíssima, o caráter cruento dessa dimensão anacronizante: “Uma chibata”. O potencial satírico da tirinha, ancorado graficamente no aspecto angelical dos seus malvados, e verbalmente na capacidade de síntese e no comprometimento de Dahmer com as questões do presente, tem no título “Reforma Trabalhista” elemento-chave. Pois é na sobreposição da discussão sobre direitos trabalhistas à memória da escravidão que se dimensiona politicamente o quadrinho.

Sobreposições temporais, imagéticas ou contextuais semelhantes têm se mostrado fundamentais na constituição de processos artísticos voltados, igualmente, para a intensificação do seu potencial de dissenção. É o que se observa, como já se assinalou, em parte do trabalho de Arjan Martins. É também um espelhamento – entre República Velha e Brasil atual -, conjugado ao contraste focal entre os personagens Floriano Peixoto e uma cozinheira dos dias de hoje, e entre dobra histórica e inserções do presente, que orienta a retomada do romance histórico por José Luiz Passos em O Marechal de Costas, em operação narrativa que parece dialogar igualmente com os cruzamentos temporais no entanto mais imprevisíveis que estruturam romances como Viagem ao México ou Em Liberdade, de Silviano Santiago.

Ao contrário do que faz estrategicamente Passos em seu romance, é um decisivo não historicismo que conduz tanto a apropriação do Samba de uma nota só (de Tom Jobim e Newton Mendonça) por Nuno Ramos em O direito à preguiça quanto dos filmes do Cinema Novo por Eryk Rocha. Ambos os trabalhos, no entanto, supõem, a construção de diálogos entre tempos distintos, a interferência entre períodos diversos da vida brasileira, e fortíssima interpelação ao presente.

No trabalho de Nuno, montado no primeiro semestre de 2016 no CCBB de Belo Horizonte, uma estrutura em andaime, de mais de 15 metros de altura, conectada a 106 tubos de órgão e a uma ventoinha, executava, em andamento lentíssimo, e em loop, a composição da bossa nova, mas refigurada pelo artista e por Leandro Cesar, e praticamente irreconhecível nessa versão lutuosa, repetida incessantemente por essa parede sonora. Não é à toa a escolha de canção paradigmática da bossa nova, das mais belas, aliás, do cancioneiro brasileiro do século XX, mas remetendo necessariamente ao otimismo desenvolvimentista do período, a um movimento musical de classe média, repleto de imagens solares, de visões de um cotidiano carioca relativamente despreocupado. Basta contrapor a ela, outras das paredes falantes da exposição, com gravações do leilão de O grito, de Munch, e com o áudio de Carlos Drummond de Andrade lendo o poema José e sublinhando que “a festa acabou”, “a luz apagou”, “o povo sumiu”, “o riso não veio”, “não veio a utopia”, “e tudo fugiu”, “e tudo mofou”.

Não apenas o registro mercadológico do valor ascendente da pintura de Munch, ou o desencanto, a refiguração, a cada verso, de um “o que fazer” mediado pela voz de Drummond, mas sobretudo a hiperdesaceleração da composição de Jobim produzida pela imensa parede organístico-tubular construída no pátio do CCBB de Belo Horizonte, sugere, nesse lugar de passagem, um tempo fora dos gonzos no qual a utopia de classe média da bossa nova, do cartão-postal do Brasil dos anos 1950, se deixa invadir por outro andamento, outra partitura, ganhando negatividade e a dimensão contraditória de uma espécie de presságio distópico.

Em Cinema Novo, é a não sobreposição propositada de materiais contemporâneos às cenas de filmes clássicos do cinema brasileiro e aos registros de arquivos da época que conduz o trabalho de Eryk Rocha. Aí tudo que se vê é apropriação, e a inserção contemporânea se dá, como em O direito à preguiça, pela invenção de um ritmo. De um ritmo outro, que refigura o objeto e seu tempo. Mas, nesse caso, se há também (como na parede-órgão de Nuno Ramos) a sugestão de um perpetuum mobile, a velocidade é necessariamente outra, passando-se aqui do lentíssimo lutuoso da escultura sonora para um andamento prestíssimo. Um ritmo que é construído pelo trabalho extraordinário de montagem do diretor e de Renato Vallone, que recortam mais de uma centena de filmes e os convertem em um conjunto vertiginoso de séries (de gente correndo, de beijos, de luta, de espaços abertos, de dor), fluxo a que assistimos, porém, como um presente fílmico, que, em seu tempo peculiar, conduz diretamente uma reflexão sobre o cinema e o Brasil dos anos 1960 e parece se perguntar, simultaneamente, sobre a hora presente e as formas possíveis de pensar o país fazendo cinema. Um presente-em-fluxo e um filme com dimensão coreográfica que, em exigente sincronicidade, mas sem quaisquer chaves de leitura, parece exigir que, em período igualmente sombrio, mas igualmente potente, esse outro presente, o do Brasil contemporâneo, reconstrua – necessariamente em movimento – os seus “motivos-para-que” artísticos e políticos.

Muros, Palimpsestos, Pentimenti

Não se limita, porém, à dimensão temporal esse exercício estratégico de sobreposição contrastiva e contaminação contextual. E têm sido fundamentalmente asocupações, os bloqueios, o agendamento de flash mobs, as intervenções súbitas (por vezes projeções de textos ou imagens) em locais públicos ou de grande circulação as respostas imediatamente mais eficazes aos projetos e medidas ligados à gentrificação das cidades e à restrição de direitos que se vêm tentando implantar no país sem qualquer referendo popular. Criam-se, então, territórios dentro de outros territórios e cabe a eles temporária ou longamente redefini-los. Como no Movimento “Ocupe Estelita”, que converteu o Cais José Estelita em espaço de luta, no centro de Recife, pelos direitos urbanos e contra a especulação imobiliária. E cuja força parece encontrar belo desdobramento ficcional num filme como Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. Ou como no “Ocupa Minc-RJ”, que, por 73 dias, transformou um Palácio Gustavo Capanema em obras em centro de produção e discussão de práticas culturais e de novas formas de pensar a política. Ou, ainda, como nas ocupações estudantis, iniciadas em São Paulo, em 2015, contra o fechamento de colégios e a transferência impositiva de alunos, propostos pelo governo Alckmin, e que se reeditariam em 2016, em centenas de instituições (inclusive privadas) como resistência à reforma do Ensino Médio que o governo Temer tenta implantar por Medida Provisória, e à PEC-55, que impõe encolhimento gravíssimo e perversa precarização dos sistemas de saúde e ensino públicos já deficientes do país. Somem-se a elas as ocupações por tempo limitado de Assembleias Legislativas, e os atos diversos de intervenção urbana – gente rasgando xerox de títulos eleitorais, ou arrancando páginas da Constituição de 1988, gente repetindo satiricamente as cenas das votações parlamentares do impeachment em lugares a rigor hostis a críticas (como a ação do “Teatro pela Democracia” num domingo de sol na Avenida Atlântica, em Copacabana), ou multiplicando-se a queda de uma mulher na de dezenas de pessoas, proposição realizada em pontos diversos do Rio de Janeiro (flash mob contra o impeachment idealizado por Patrick Sampaio, do movimento “Reage Artista”). 

Nessas ocupações recentes, evidenciam-se reatualizações propositadas da “forma acampamento”, própria às ocupações de terras, engenhos e prédios abandonados pelos movimentos de trabalhadores sem-terra e pelos sem-teto urbanos, método cuja expansão, no Brasil, se deu sobretudo desde os anos 1990. Mas, ao lado desse diálogo com a história política do país, operam, igualmente, uma incorporação de aspectos constitutivos das ocupações acionadas, no mundo todo (dentre elas o “Occupy Wall Street” e “Los Indignados”), por pauta (econômica, climática, social) diversificada e ligada aos movimentos internacionais antiglobalização. Assim como de procedimentos acumulativos semelhantes aos empregados em instalações artísticas, com frequência produzindo-se cruzamentos complexos entre referência à arte contemporânea e o uso da forma-acampamento. Nas ações e intervenções singulares, com focos imediatos precisos, evidenciam-se, também, enlaces fortíssimos entre ação artística e ação política, teatro, performance, grafite, pintura de rua e exercício crítico da cidadania e do trânsito pelas diversas zonas das cidades.

Se as ocupações guardam a tensão entre o espaço por elas apropriado e a refuncionalização em curso, e é esse contraste que amplia o seu potencial de problematização, também as intervenções urbanas dialogam necessariamente com as ordenações espaciais e as divisões sociais cotidianas, expondo-as, porém, aos deslocamentos resultantes dos acontecimentos imprevistos. E que podem deixar rastro na memória urbana, como, no Rio de Janeiro, a ocupação do Túnel Novo (que liga Botafogo a Copacabana) pelos participantes da contra-abertura das Olimpíadas em agosto de 2016 ou como a partida noturna de futebol, na Avenida Delfim Moreira, jogada, em 2013, por black blocs, pelo grupo de ativistas que sitiavam a entrada do prédio do ex-governador Sérgio Cabral Filho e pelos manifestantes contra o desaparecimento do pedreiro Amarildo, que tinham descido dos morros cariocas. Acontecimentos que se mantêm como camadas ativas no imaginário político e nas discussões sobre direitos urbanos, como espécies de palimpsestos geográfico-temporais sobre os quais se esboçam novas esferas de ação.

É com intervenções como essas que dialogam exercícios de pintura de rua e de escrita pictórica como os dos artistas Joana Cesar, Gustavo Speridião e Alexandre Vogler. E também com as “cidades de muros” (para empregar a expressão de Teresa Pires Caldeira), em que se converteram as grandes metrópoles brasileiras, com sua privatização crescente do espaço público, com suas técnicas de segurança e fortificação de moradias, prédios comerciais e instituições, e que têm nos muros e nas cercas as imagens verdadeiramente exemplares de uma exacerbação do medo e das políticas de controle e segregação social. E, no entanto, não é só como territórios defesos, porém passíveis de intervenção, mas, igualmente, como suportes cumulativos, que guardam camadas e camadas de inscrições anteriores, que os muros se converteram em matéria primordial no método artístico (no entanto bastante diverso) de Joana Cesar e Gustavo Speridião. Basta contrastar a eles as inscrições urbanas de Alexandre Vogler, por exemplo, que podem ocupar espaços verticais (e avisar “Baldeação para afastar pobre da Zona Sul”), mas que também irrompem no chão, em praias (cf. “A/ trair/ investimento”, escrito em letras de areia) ou calçadas (“Fui mijar sumi no mar”, cavado no cimento). Speridião e Joana, por sua vez, mantêm relação verdadeiramente impositiva com a textura, o aspecto coral, e o acúmulo de vestígios de paredes e muros.

No caso de Gustavo Speridião, se não faltam inserções no espaço urbano (como acontece na série de cubos-nuvens espalhados pela zona portuária de “Nuvens no porto do Rio de Janeiro”), há sobretudo apropriação das “imagens do mundo”, das formas de comunicação gráfica e de expressão individual ou coletiva anônima das ruas. Por vezes, são páginas de livros que renomeia, e sobre as quais insere comentários, margens e legendas irônicas, como na série O Fantástico e Inabitável Mundo da História da Arte. Por vezes, são obras mais vastas, pautadas diretamente em colagens de cartazes e panfletos. Mas é no uso frequente da pintura como suporte para calculada tensão entre composição e manifestação, como forma de “pentimento” no qual se sobrepõem ou conflituam letras, formas diversas, palavras de ordem, estrofes irregulares e atas de movimento, por vezes francamente autorreferentes (como em “Uma Pausa”, “A Rigorosa Paisagem”, “Estrofe irregular”, “Linear captura Pictórico”), por vezes apontando para caráter convocatório e dimensão política (direta) intra/extrassuporte (como em “Maldita Burguesia”, “Não”, “Fora”, “O mundo periculoso do trabalho”, “Não temer o mundo. Mudá-lo”, “Amanhã Manifestação”). Dicção convocatória mesmo quando a referência plástica à rua, ao cartaz, ao muro, se vê tensionada por expressão intimista (“Queria estar tranquilo”, “A lágrima é só o suor do cérebro”) ou quando, quase silenciosa, sublinha negativamente, mas ainda como palavra de ordem, o seu método artístico: “Pare com as frases”.

No trabalho de Joana Cesar, se a rua teve função propulsora, enquanto “suporte ideal para um trabalho anônimo”, foram as texturas, as camadas, a “sensação de acúmulo” dos muros que contribuíram decisivamente para a constituição de uma poética própria. A princípio como campo de tensão para a sua pintura de rua – pautada por formas humanas simplificadas e pela escala ampliada das letras de um alfabeto codificado – em contraste com as demais manifestações urbanas, as pichações, os grafites, os cartazes de propaganda e a cal aplicada pela prefeitura para apagar as inscrições. Os textos imensos, pintados em alfabeto inventado pela artista, e espalhados pela cidade, se indecifráveis para o passante comum, mantêm o caráter de aviso surdo, e por vezes, ao ganhar espaços mais vastos, como o das bases da antiga Avenida Perimetral, por exemplo, redimensionam-se narrativamente, distribuindo-se, neste caso, em dísticos visuais simétricos que dão lugar a uma espécie de animização da via e de lamento pelas demolições do que viria a resultar na zona portuária carioca refigurada para a Olimpíada de 2016.

A experiência continuada, por mais de uma década, da pintura de rua se projetaria, de certo modo, nos trabalhos de ateliê de Joana, pautados por escala ampliada (como nos muros) e por um processo de composição em camadas. Pois ela trabalha, em geral, com grandes telas nas quais se sobrepõem papéis picados resultantes de fotos, documentos, propagandas, outdoors, cartas, pedaços de muros ou impressos quaisquer, recortados e distribuídos pela artista em diferentes “áreas/ilhas temáticas”. “As camadas são a memória, e contam a história da superfície apresentada”, explicou, certa vez, a pintora em entrevista à Revista Usina. Uma observação, fundamental à sua poética, que curiosamente parece dialogar com poema incluído por Marcos Siscar em Manual de Flutuação para Amadores. E que, tratando “Do interesse do lixo”, e das “coisas velhas em exaustão de mundo”, comentaria: “(...) o que foi usado não precisa/ser reciclado encardenado como novo/o que vem do uso carece ser/ocupado reescrito como o primeiro livro/de um gênero curioso exposto à fratura/em conjuntura de crise que nada finda/ou apenas isso um desejo de mundo”. O que se apresenta aí, nessa estrofe, como nas grandes telas de Joana Cesar, é um processo de construção por ocupação, recorte e sobreposição, no qual o que de fato se expõe não seriam simplesmente as formas, cores ou escritas (todavia presentes), mas, sim, a sensação mesma “do acúmulo e sua força”.

Dobras figurais, intradiferenciações

Funcionando tanto como figurações tópicas de limites e exclusões, quanto como suportes expostos a intervenções regulares, e de variável intensidade, camadas sucessivas de vestígios, materiais, texturas e ecos urbanos, esses muros se imporiam, pois, igualmente, à cultura literária brasileira recente. Podem surgir hipoteticamente, inclusive, e de onde menos se espera, sob formas igualmente inesperadas, como em “Paris não tem centro”, de Marília Garcia, em meio ao relato de uma volta a São Paulo, e ao registro do desconforto de “estar falando numa instituição”, pois agora “é muito perigoso falar das instituições/depois vão acabar usando isso contra você”. Pois é exatamente nesse momento de explícito temor que, de repente, visualizam-se paredes no poema. Não literais, mas sob forma de proposição, de referência aos wall drawings, de Sol Lewitt, instruções do artista sobre como desenhar em paredes, intervenções cujo resultado, porém, depende necessariamente de quem e de como elas são executadas. Ficando, nesse caso, portanto, a parede apenas como hipótese de resposta – em suspenso – à passagem por território institucional crescentemente temível.

Esses muros podem se impor, também, como barreiras de que subitamente alguém não consegue se descartar. Lembre-se, nesse sentido, o arquivo que se contrapõe – quase um muro móvel – aos percursos, mesmo mínimos, do sujeito, na série Casaco de moletom com capuz, de Franklin Dassie. Pois aí ele parece estar invariavelmente atravessando “um arquivo gigante” – “aquela coisa parecida com a vida”, ou com “uma loja de departamentos”, “uma avenida”, um “museu de história natural”. Até que “não há mais casa/só uma grande sala/um arquivo gigante/que atravesso sempre”. Série cumulativa de barreiras que, na poesia de Dassie, seria uma dentre as muitas manifestações de empecilhos por meio dos quais desmontam-se e remontam-se os poemas. E que tanto podem se converter em jogo serial entre caixa, laranjas, rinoceronte, hipopótamo, nomes e endereços, quanto se desdobrar numa sequência de quedas, que envolvem perda de formulários, papéis, certidões – e podem se dar na rua, na sarjeta, na grama, no porta-luvas, ou até dentro da cabeça do seu portador.

É, pois, condição de percurso em tempos sombrios esse atravessar conscientemente muros, arquivos, camadas, e modos de usá-los – à maneira das intervenções e ocupações em espaços restritivos, à maneira da apropriação dos filmes dos anos 1960 (e mais alguns) em Cinema Novo, ou do andamento lentíssimo contraposto ao Samba de uma nota só em O direito à preguiça, ou do exercício de refiguração (com “lá” negativo) das canções do exílio por Angélica Freitas. O que se desdobraria, no âmbito da cena teatral e do exercício narrativo, em intervenções no modo mesmo de construção da voz – em figurações e dicções narratoriais submetidas a intenso processo de intradiferenciação.

Nessa linha, são exemplares dois espetáculos produzidos no Ceará, ambos sobre o universo trans – Histórias compartilhadas e BR Trans. E que, no entanto, adotariam procedimentos bastante diversos, mantendo-se, no entanto, calculada tensão entre o conjunto de personagens entrevistadas ou documentadas e o performer que executa o monólogo (em perspectiva multifocal). Num caso, o de BR Trans, trabalha-se com vasta sequência de relatos. Daí o recurso constante a uma particularização que envolve, a cada nova história, a inscrição, pelo ator Silvero Pereira, de nomes femininos diversos (Bruna, Mika, Babi, Marcelly, Tyna, Milena, Dani) em seu corpo. O que já expõe uma diferenciação entre personagem e narrador. Mas não deixa de abrigar duplicações vocais ou dublagens de vozes alheias (como a da cantora Maria Bethânia).

Já em Histórias compartilhadas, espetáculo desenvolvido originalmente como pesquisa universitária, Ari Areia e Eduardo Bruno optam por apresentação intencionalmente mais distanciada. E sem que se realize qualquer tentativa mimética de apropriação do universo de que trata o trabalho. Nele, em meio a uma série de histórias de vida ligadas à transexualidade masculina (as de João W. Nery, Otávio Queiroz, Tiago Uchoa, Riley Moscatel e Buck Angel), trabalha-se, sobretudo, o contraste entre o documentário cênico e a construção por Ari Areia de performance paralela aos relatos e registros em vídeo. Nela, expõe o corpo à dor, ao desconforto, mas de modo metódico, quase silencioso, e acaba usando o próprio sangue, que extrai em cena, para banhar com ele uma imagem de Jesus Cristo. O que, como se sabe, resultaria em interpelações judiciais e ameaças físicas ao ator, desviando-se, desse modo, a dimensão transfóbica das reações à peça para outro campo, o de uma suposta querela religiosa.

Radicalmente distinta, no âmbito dessas apropriações intradiferenciadas de vozes e histórias alheias, é o método empregado por Bia Lessa e Dany Roland num filme que levaram quase duas décadas para concluir – Então morri, exibido afinal em 2016 nos festivais do Rio e de São Paulo. Trata-se, aí, da construção de uma história de vida, da vida de uma mulher, que, no entanto, é legião. É formada de pedaços de vidas de uma série de mulheres de idades diferentes – meninas, velhas, moças. E a base é uma sucessão de testemunhos, colhidos em trânsito em múltiplas cidades brasileiras. Não há, no filme, comentários, intervenções ou qualquer tentativa externa de costurar os fragmentos, apenas as vozes dessas mulheres, montando a vida de uma mulher. E, no entanto, não se apagam diferenças. Pelo contrário, essa heterogeneidade em bruto é crucial aí. Assim como a evidência de que a condução das duas câmeras se faz por gente de fora, câmeras sempre em movimento, em contraste com o ritmo lento dessas vidas de mulheres e das pequenas cidades que habitam.

Se, nos espetáculos aqui referidos, há demarcação (no entanto empática) de diferenciações entre testemunhos, e entre esses e o lugar de atuação do performer, e em Então morri a ficção de uma vida se alimenta, documentariamente, de heterogeneidades que assim se mantêm, já em textos como O Brasil é bom, de André Sant’Anna, é como esforço de descolamento e repulsa que se cede a voz ao discurso raivoso ou pretensamente iluminado (jurídica ou religiosamente) do segmento majoritariamente conservador da classe média brasileira. Pois é exatamente ao parecer ceder mimeticamente a voz e a articulação discursiva a uma nova classe trabalhadora sem consciência de classe e a uma classe média crescentemente virulenta, individualista e incapaz de pensar sem bengalas midiáticas e repetições de clichês religiosos ou neoliberais, que André Sant’Anna intensifica distâncias. Teatraliza-se essa voz pseudoingênua ou raivosa, a rigor tão de perto do seu modo habitual de funcionamento, que mal se enxerga, à primeira vista, a inteligência satírica daquele que é talvez um dos escritores mais importantes atualmente no país. Pois, ao lado dessa aproximação, há também uma reconstrução rítmica que expõe essas falas ao seu próprio esgotamento, a uma autorrepetição que é também desgaste, e inclemente desmontagem.

Por vezes, intradiferenciações que minam dicções aparentemente homogêneas ou controladamente heterogêneas têm também como alvo direto o funcionamento do campo literário, suas disputas discursivas e as possibilidades de autofiguração autoral. Lembre-se, nesse sentido, de um livro construído por camadas discursivas paralelas como As visitas que hoje estamos, de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira. Ou, nos recentes A fisiologia da idade e Inquérito penal família Tobias, de Ricardo Lísias, a indagação, no primeiro, sobre a perda de força da escrita literária (“Como o Brasil chegou a um número tão grande de romances que não incomodam ninguém?”), e a calculada autoexposição autoral, no segundo, aos mecanismos de controle de uma sociedade crescentemente judicializada, e passivamente cedendo direitos individuais, inclusive a própria possibilidade de manifestação não criminalizada de dissenções. Nesse sentido, Lísias montou, em folhetins eletrônicos, uma ficção judicial que o levaria a uma intimação de fato e à composição de uma não narrativa que assume literalmente a forma e a retórica do inquérito, expondo, simultaneamente, assim, a lógica e os limites cognitivos e discursivos desse formato e de uma lógica que, acoplada a um imaginário religioso simplificado, parece alimentar o neoconservadorismo, e a pauta “ordem e segregação” em expansão no país.

Como no livro-inquérito de Lísias, é com também expansiva interlocução policial que João Paulo Cuenca constrói talvez o seu melhor romance em Descobri que estava morto. E, nesse caso, é cruento, extremamente cruento, esse irônico exercício autoficcional no qual, no entanto, entre o tédio por previsíveis aspectos da vida literária e uma intromissão quase involuntária (no livro) em protestos urbanos, converte-se a narrativa em vigorosa indagação, no calor da hora, sobre a experiência artística em tempos de retração democrática, e de normalização cada vez mais abrangente do estado de exceção. Nesse sentido, os segmentos finais do romance, e não só o confronto intencionalmente violento com os homens da lei, mas também o do narrador com a sua história, cumprem, ao mesmo tempo, uma espécie de torção perversa das discussões protocolares sobre autoficção, e sobre fato e ficção, e convidam literalmente o narrador a se expor não apenas como figura cindida, mas como dead end.

O Cão

Não à toa, a certa altura, em meio à anatomia do narrador operada por Cuenca, ele se vê caído numa poça de sangue e cacos, sentindo o gosto do gás lançado pela polícia e com os cães começando a lamber-lhe o rosto. Se o espancamento resulta de exposição meio aleatória, no romance, a conflitos urbanos, a presença dos cães talvez não. E ela parece cada vez menos aleatória na produção cultural recente. Dos latidos registrados quase imperceptivelmente em Então morri ao “Pitbull” enjaulado, mas em versão cruamente realista, na pintura de 2013 de Jorge Duarte. Dos cães que cruzam algumas imagens de Perabé, de Luiza Baldán, ou surgem em pintura de Arjan Martins, ao fundamental Monólogo para um cachorro morto, de Nuno Ramos.

E, se os que se aproximam do corpo ferido do narrador de Descobri que estava morto parecem amigáveis, empáticos, não é essa a regra figural. Como nos latidos registrados em Sem vagas, conto de Ricardo Domeneck: “O cachorro agora começa a latir no quintal da casa vizinha. ATENÇÃO CÃO. Você não é bem-vindo aqui”. “E quem é?”, pergunta-se o narrador. É com aviso semelhante que joga Augusto de Campos em intervenção pré-impeachment, na qual, numa sobreposição propositada de tempos, se apropria de mosaico encontrado na “casa do poeta trágico” em Pompeia que sugere cuidado com o cão (“Cave canem”) para convertê-lo em CAVE MIDiA$. Em aviso de atenção não apenas com os cães, mas com a mídia-midas e com os que controlam o capital. Com extraordinário poder de síntese, sobrepõem-se ao cão de Pompeia uma série de outros, e, com eles, a confluência entre plutocracia, meios acríticos de comunicação e repressão policial que costuma sustentar os autoritarismos.

É uma figura vadia, e ele-mesmo ensanguentado, e no limite, o cão que deambula e substitui o autor no belíssimo “Prólogo canino-operístico” do Livro das Postagens de Carlito Azevedo. É um cão habitado por outros – pelo do Adeus à Linguagem, de Godard, pelo de Marina Tsvetaeva, pelo dos desenhos de Maiakóvski, pelo canto noturno da baleia branca de Augusto de Campos. E, sim, também pelo que funciona como guardião do Inferno: “Eu vim farejar ossos com Hécuba./ É horrivel a vergonha e a humilhação”. Esse cão, que monologa, reclamando incessantemente a presença de um autor ausente, sentindo “falta de céu, de horizonte”, avisa que não dá testemunho, nem ouvidos, “apenas fareja o que lhe atiram”. E figura, em seu percurso por território devastado, uma espera a rigor sem horizonte, e, no entanto, coletiva, coral – “com todos os outros/gotas de suor/rolando da testa/batidas mais rápidas/no peito/quando a bala/vara o cubo/quando as bombas explodem/explodem/reduzem o cubo/a pó”. Sem voz, sem palavras, mas “falando/falando/falando”. E produzindo uma escrita-em-tensão que, como algumas das manifestações culturais desses tempos pré/pós-impeachment, responde, com extraordinário vigor, ao momento presente. E nos impõe exigência semelhante.