Obra acima do artista Hernan Marina
Nota da edição: este post foi motivado por um terrível crime de ódio ocorrido nos Estados Unidos em junho de 2016. Algumas informações estão datadas, mas mantivemos as informações do post original porque sua motivação é daquele ano, ainda que os crimes de ódio contra a população LGBT continuem no mundo. Ajustamos, apenas, questões de formatação e informação sobre nascimento e morte de autoras e autores.
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O massacre na boate gay Pulse, de Orlando (EUA), já entrou para a história como um dos grandes crimes de ódio. Como é a perspectiva do Pernambuco, buscamos sempre usar a literatura para iluminar as questões que a sociedade tem enfrentado. Nessa lista, trechos contra a homofobia e a transfobia, não necessariamente em forma de combate braçal ou de discurso, mas também de uma luta que é travada a partir de declarações de afeto. É o caso do poema "Banho de xampu", escrito por Elizabeth Bishop para sua companheira, a brasileira Lota de Macedo de Soares, um dos mais belos da literatura de língua inglesa recente. De Caio Fernando Abreu a Roberto Bolaño, que esses textos sirvam para todos como armas de "combate".
1 – “Erguendo os olhos para o rosto daquele homem jovem que eu ainda não Sabia que era Pedro, entre os solavancos do trem, do lado oposto da barra amarela que afunda pelo túnel, tomado por aquelas sensações e todas essas outras que tento especificar agora, algumas sem nome, como aquele calafrio crispado e gozoso da montanha-russa, um segundo antes de despencar no abismo, esbarrei num rosto claro que oscilava de um lado para o outro, eu não Sabia se pelo balanço do trem ou se estaria um pouco bêbado. Devia ser sábado, passava da meia-noite. Ele sorriu para mim. E perguntou:
− Você vai para a Liberdade?
− Não, eu vou para o Paraíso.
Ele sentou-se ao meu lado. E disse. − Então eu vou com você.”
>> Do livro Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu (1948-1996). O romance, marcado por seu ostensivo conteúdo camp, lança mão da figura da cantora desaparecida Dulce Veiga para retratar o pânico da aids durante a virada entre as décadas de 1980 e 1990.
2 – Carta ao pai
Agora que o senhor
mais assemelha pedaço
de carne com dois olhos
dirigidos ao teto escuro
no leito em que provável
só não há-de morrer só
porque nem a própria
saliva poderá engolir
por si na companhia
somente desta sonda
que o alimenta
me pergunto se ainda
em validade a proibição
da mãe em confessar
ao senhor os hábitos
amorosos das mucosas
que são minhas
e se deveras me amaria
tanto menos soubesse
quanta fricção já tiveram
que não lhes cabia
biológica ou religiosa
-mente e se também
pediria para sua filhoa
a morte que desejou
a tantos de minha laia
quando surgiam na tela
da Globo da Record
da Manchete do SBT
que sempre constituíram
seu cordão umbilical
com a tradição
e se deveras faria
sobrevir sobre eles
grande destruição
pela violência
com que urrava
seus xingamentos
típicos de macho
nascido no interior
desse país de machos
interiores e quebrados
em seus orgulhos falhos
de crer que o pai
é o que abarrota
geladeiras e não deixa
que falte à mesa
o alimento que nutre
as mesmas mucosas
em que corre
o seu sangue
mas não seu Deus
e ora neste leito partido
o cérebro em veias
como riachos insistentes
em correr
fora das margens
se o senhor
soubesse o dolo
com que manchei
a mesa
de todos os patriarcas
ainda pergunto-me
se me receberia
com a mansidão
que aceita na testa
o beijo desta sua filhoa
que nada mais é
que a sua imagem
e semelhança invertidas
tal espelho
que refletisse opostos
de gênero e religião
ou o desenho
animado na infância
de uma Sala de Justiça
onde numa tela
podia-se observar
um mundo ao avesso
e se o Pai e o pai
odeiam deveras
o gerado nas normas
da Biologia e Religião
mais tarde porém geridos
na transgressão das leis
que o Pai e o pai
impõem-nos na ciência
de sermos todos falhos
nessa Terra onde procriar
é tão frequente
que gere prazer
nenhum e olho
o senhor
com essas pupilas
que talvez jamais
reflitam o Pai
mas ora veem o pai
eu
mesmo pedaço
de carne
com dois olhos
peço perdão
em silêncio
pois sequer posso
dizer que não
mais há tempo
e mesmo assim
e porém
e no entanto
e contudo
pelo medo adversativo
de talvez abalar
uma sistema rudimentar
de alicerces
sob a casa
sob o quarto
sob esta cama
de hospital
emprestada
escolho
uma vez mais
o silêncio
>> Carta ao pai, de Ricardo Domeneck, poema presente em Medir com as próprias mãos a febre. Domeneck é um poeta brasileiro gay radicado em Berlim. É um dos editores do site http://revistamododeusar.blogspot.com.br/, dedicado à poesia contemporânea.
3 – “Veem-se homens como Walter em todos os cantos de Chelsea e Village, homens que teimam, aos 30, 40 ou mais, em afirmar que sempre foram bem dispostos e confiantes, fisicamente vigorosos e nunca foram escarnecidos ou desprezados. Richard argumenta que homossexuais masculinos eternamente juvenis prejudicam mais a causa do que homens que seduzem rapazinhos, e é verdade que Walter não acrescenta nem uma sombra de ironia ou cinismo adulto, nada que seja sequer remotamente profundo, ao seu interesse pela fama e pelas modas, pelo restaurante mais em voga.”
>> Do livro As horas, de Michael Cunningham. O romance, famoso pelo filme homônimo, retrata o processo de emancipação e luta da cultura gay ao longo da segunda metade do século XX. O ponto de partida é justamente a própria Virginia Woolf, durante a escrita de Mrs Dalloway.
4 – "Mas, afinal, devemos culpar Orlando? A época era a elisabetana; sua moral não era a nossa; nem os poetas; nem o clima; nem mesmo os legumes. Tudo era diferente. O próprio clima, o calor e o frio do verão e do inverno eram, podemos crer, totalmente de outra feição. O dia brilhante e amoroso era tão completamente separado da noite como a terra da água. Os poentes mais vermelhos e mais intensos; as alvoradas mais brancas e mais luminosas. Nada sabia de nossa meia-luz crepuscular nem de nossa lânguida penumbra. A chuva ou caía com veemência ou nada. O sol brilhava ou havia a escuridão. Traduzindo isto para as regiões espirituais, como é seu costume, os poetas cantavam lindamente como as rosas fenecem e as pétalas caem. O momento é breve — cantavam; o momento acabou; uma longa noite será dormida por todos. Usar artifícios de estufas ou viveiros para prolongar ou preservar esses cravos e rosas não era de seu feitio. A insípidas complicações e ambiguidades de nossa época mais gradual e duvidosa eram desconhecidas para eles. A violência era tudo. A flor vicejava e murchava. O sol nascia e se punha. O amante amava e partia. E tudo o que os poetas diziam com rimas, os jovens traduziam na prática. As moças eram rosas, e suas estações tão breves quanto as das flores. Precisavam ser colhidas antes do anoitecer; pois o dia era curto, e o dia era tudo. Portanto, se Orlando seguia a tendência do clima, dos poetas e da própria época, e colhia sua flor no peitoral da janela mesmo com a neve cobrindo o chão e a rainha vigilante no corredor, não podemos culpá-lo. Ele era jovem; era ingênuo; só fazia o que a natureza lhe ordenava"
>> Do livro Orlando, de Virginia Woolf (1882-1941). A história de um viajante do tempo, e “turista” dos gêneros masculino e feminino, marca a narrativa de um dos romances mais importantes do século XX.
5 – “Lorenzo cresceu no Chile e sem braços, o que por si só já o deixava numa situação bastante desvantajosa, mas ainda por cima ele cresceu no Chile de Pinochet, o que transformava qualquer situação desvantajosa em desesperadora. Mas isso ainda não era tudo, pois ele logo descobriu que era homossexual (…) Numa tarde de verão especialmente triste, quando o sol se escondia no Pacífico, Lorenzo saltou para o mar de uma rocha usada exclusivamente por suicidas (coisa que existe em qualquer trecho do litoral chileno que se preze). Afundou como uma pedra, com olhos abertos, e viu a água ficando cada vez mais escura e as borbulhas que saíam de sua boca e depois, com um movimento involuntário, voltou à tona. As ondas não permitiram que visse a praia, tão somente as rochas e à distância os mastros de algumas embarcações. Depois voltou a afundar. Nesse momento também não fechou os olhos: moveu a cabeça com calma (a calma de um anestesiado) e buscou com os olhos alguma coisa, qualquer que fosse, mas que fosse bela, para retê-la no momento final. Então, sua vida, como se costuma dizer, desfilou diante de seus olhos como num filme. Alguns trechos em branco e preto e outros em cores. O amor de sua própria mãe, o orgulho de sua pobre mãe, a exaustão de sua pobre mãe ao abraçá-lo à noite, quando tudo nos vilarejos pobres do Chile parecem estar por um fio (em branco e preto), os tremores, as noites em que urinava na cama, os hospitais, os olhares, o zoológico dos olhares (em cores), os amigos que compartilhavam o pouco que têm, a música que nos consola, a maconha, a beleza revelada em locais inverossímeis (em branco e preto), o amor perfeito e breve como um soneto de Góngora; a certeza fatal (mas cheia de raiva dentro da fatalidade) de que só se vive uma vez. Tomado de uma súbita coragem, decidiu que não ia morrer. Conta-se que disse é agora ou nunca, e voltou à superfície. A subida lhe parecia interminável; manter-se à tona, quase impossível, mas conseguiu. Naquele tarde, ele aprendeu a nadar sem braços, como uma enguia ou uma serpente. Matar-se, disse, nessa conjuntura sociopolítica, é absurdo e redundante. Melhor se tornar um poeta secreto”.
>> Do livro Estrela distante, de Roberto Bolaño. A novela encerra o tema favorito do escritor chileno: jovens que têm o destino atravessado por um golpe de estado.
6 - “Existem pessoas”, ele prosseguiu, “que precisam obter permissão para viver, e se a Baronin não encontrar quem lhe dê tal permissão, ela vai construir para si mesma uma inocência; um pavoroso tipo de inocência primitiva. Pode ser considerada ‘depravada’ por nossa geração, mas nossa geração não sabe tudo.” Ele sorriu. “Por exemplo, Guido: como poderia a maioria das pessoas perceber seu valor? Nossa vida é singularmente nossa quando nós temos de inventá-las”.
>> Do livro No bosque da noite, de Djuna Barnes (1892-1982), romance de 1936. Quem fala nesse momento do livro é Matthew O'Connor, um médico sem diploma gosta de sair travestido pelos mictórios parisienses e que catalisa em sua figura esse desejo de ser quem a sociedade não permite que se seja.
7 – “Mary entrou para o escritório de Stephen e sentou-se diante da espaçosa mesa de trabalho, pois agora, de repente, só estava sentindo deveras uma coisa: saudade e amor por Stephen. E desse amor lhe adveio o desejo de consolar, já que em toda mulher apaixonada existe muito do sentimento maternal. A carta ficou cheia de pequeninas coisas que uma pena menos privilegiada teria preferido não escrever – lealdade, confiança, devotamento, consolo. Tudo isso e muito mais escreveu ela a Stephen. E enquanto ali esteve sentada, o coração parecia distender-se dentro do seu peito, como em resposta a um poderoso apelo.
E foi assim que Mary fez face – e venceu – à primeira tentativa do mundo em arremeter contra ambas.”
>> Do livro O poço da solidão, de Marguerite Radclyffe Hall (1880-1943). Publicado em 1928, é um dos primeiros romances a tratar de uma personagem central transexual (por muito tempo lida apenas como lésbica): Stephen Gordon, jovem nascida com o sexo feminino, mas cujo gênero masculino é observado desde a infância. Na vida adulta, Stephen se coloca, de fato, como um homem, “pois se sente exatamente como um”.
8 – O banho de xampu
Os liquens - silenciosas explosões
nas pedras - crescem e engordam,
concêntricas, cinzentas concussões.
Têm um encontro marcado
com os halos ao redor da lua, embora
até o momento nada tenha mudado.
E como o céu há de nos dar guardia
enquanto isso não se der,
você há de convir, amiga,
que se precipitou;
e eis no que dá. Porque o Tempo é,
mais que tudo, contemporizador.
No teu cabelo negro brilham estrelas
cadentes, arredias.
Para onde irão elas
tão cedo, resolutas?
- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia
amassada e brilhante como a lua.
>> Este poema de Elizabeth Bishop (1911-1979), com tradução de Paulo Henriques Britto, está presente na antologia Poemas do Brasil. A inspiração do texto foi sua companheira brasileira, a arquiteta Lota de Macedo Soares.
9 – “O prazer é a única coisa merecedora de que se lhe dedique uma teoria” – replicou lorde Henry, com a sua fala melodiosa e lenta. “Mas desconfio que não posso reivindicar a qualidade de autor dessa teoria. Ela pertence à natureza e não a mim. O prazer é o teste da natureza, o seu sinal de aprovação. Quando somos felizes, sempre somos bons; mas, por sermos bons, nem sempre seremos felizes.”
>> Do livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde (1854-1900), livro que, ainda que de forma ambígua, cria no fim do século XIX um dos mais emblemáticos personagens gays da história da literatura.
10 – "Mas o que diabos mesmo acontece à maioria dessas pessoas? Elas têm seus voos e depois se evaporam no ar. Eventualmente porque precisam arrumar algum emprego como telefonistas, como sócias em lojas de luminárias em alguma cidade nas montanhas de San Fernando... e outras chegam para tomar seus lugares.... mas a maioria dessas pessoas acabam mesmo desaparecendo, e você esquece delas até que escuta, num dia qualquer, uma certa canção".
>> Do romance Dancer from the dance, Andrew Holleran. Livro fundamental para se entender a cena gay norte-americana durante os anos 1970, tomando como ponto de partida a cena de clubes noturnos. Inédito no Brasil.