Primeira nota
A Ocupação Capanema, no Rio de Janeiro, tem início no dia 16 de maio em protesto contra o a incorporação do MinC pelo Ministério da Educação, mas, principalmente, contra o Governo interino de Michel Temer, não reconhecido como legítimo pelos manifestantes. No manifesto escrito pelo grupo de ocupantes exige-se a “deposição imediata do governo ilegítimo”. Ocupar espaços, reunir e resistir, não negociar com um governo considerado ilegítimo.
Nos primeiros dias da ocupação, os pilotis do Palácio Capanema foram tomados pela Orquestra Música pela democracia, pela presença não anunciada de Milton Nascimento e Chico Buarque cantando “O cio da Terra”. Nos dias seguintes, a grande imprensa começa a sequestrar o evento e a publicar uma outra narrativa. São “shows pela cultura”, “pela volta do MinC”. Artes anunciando os “shows” – e não a luta – aparecem no site de O Globo anunciando a programação do dia. O nome mais aguardado passa a ser o de Caetano Veloso.
Intermezzo.
No dia 15 de maio, Caetano Veloso, atual colunista da Folha de São Paulo, publica n´O Globo o artigo intitulado “Sem Festa”. Segue o primeiro parágrafo: "Parece que há quem queira festejar. Eu, neste primeiro momento do governo Michel Temer, só tenho mesmo é uma grande queixa a fazer: a extinção do MinC é ato retrógrado. Depois de já haver, oportunisticamente, desistido de diminuir o número de ministérios, Temer, premido pela má repercussão da notícia, voltou a fazer o que a maioria dos brasileiros, acertadamente, quer: enxugar a máquina administrativa, na crença de que, assim, faz economia e livra-se do toma-lá-dá-cá. Na verdade, o peso econômico é pífio e as escolhas dos novos ministros não apontam para um critério técnico e meritocrático. Seria uma beleza se um presidente peemedebista nos livrasse do vício da distribuição “política” de cargos. Mas nossa oficialidade não vive de belezas. No entanto, reduzir o número de ministérios é bom de qualquer jeito. É bom simbolicamente, formalmente. Mas o desfazimento do MinC é negativo."
Caetano, no artigo, reconhece o Governo Michel Temer, não há uma linha sequer que coloque em dúvida a legitimidade de Temer e seu ministério. O problema resume-se ao desaparecimento do MinC, transformado em secretaria. Precisamos enxugar a máquina, mas não o MinC. Haveria, então, podemos subentender, ministérios que poderiam sair de cena sem prejuízo para a população. Quais seriam? O da Ciência e Tecnologia, por exemplo, agora englobado pelo Ministério da....Comunicação? Essas são questões minhas, não as de Caetano, e seria injusto pedir ao articulista que ele respondesse a algo que não se propõe fazer. Seu único ataque mira a volta do MinC.
Fim do Intermezzo.
Segunda nota.
Caetano sobe ao tablado improvisado no Pilotis do Capanema no dia 20, uma sexta chuvosa na cidade. Mais de três mil pessoas, dados dos organizadores da ocupação, esperavam. Naquela noite, Caetano, durante uma hora, assumiria o papel de cantor e mestre de cerimônias, anunciando outras artistas, como Erasmo Carlos, e políticos, como do deputado Jean Wyllis e Marcelo Freixo, ambos do Psol. “O MinC é nosso. É uma conquista do Estado brasileiro. Não é de nenhum governo.” – diz Caetano para a plateia que vibra. As escolhas das canções foram mais do que acertadas. Força estranha, A luz de Tieta, Um índio, Odeio, Alegria, Alegria, Tropicália, entre outras, traçaram um roteiro poético-histórico da carreira de Caetano Veloso, mas também da memória pessoal e coletiva do país.
Caetano, no Capenema, em 2016, desejando ou não, independentemente de sua vontade política, dialogava com o Caetano dos palcos dos Festivais da Canção, dos anos 60. O Caetano de Alegria, Alegria, de É proibido proibir.
Nota final ou “Vamos comer Caetano”.
A plateia e Caetano em 2016. No vídeo, gravado provavelmente em um celular, vemos Caetano em close cantando uma de suas mais contundentes canções. Um soco em todos nós. Sabe-se, posteriormente, que uma mulher indígena passará a Caetano um cocar de penas brancas. Caetano entoa, com o cocar na cabeça: “E aquilo que nesse momento se revelará aos povos∕ Surpreenderá a todos, não por ser exótico∕Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto∕ Quando terá sido o óbvio.” A cena é bela e coloca em suspensão, momentaneamente, o mal estar político. Terminada a canção, a plateia, fora do quadro, traz o grito das ruas: “Fora, Temer! Golpistas não passarão! Fora, Temer! Golpistas não passarão”. Caetano, em close, sorri esfinge, sorri camaleão sem mostrar os dentes, sorri com seu belo cocar, mas não cerra os punhos, não grita, desvia o olhar, diz um vago “que bonito”. Religa-se a canção seguinte.
Não se deve, nem se pode, exigir de artistas, mesmo de alguém como Caetano que sempre fez questão de declarar suas posições políticas publicamente, uma sintonia exata com nossas convicções políticas. Trata-se de questionar por que Caetano Veloso foi até uma ocupação, cuja proposta de luta é a destituição de um governo considerado ilegítimo, e se coloca à parte das reivindicações para se concentrar apenas na volta do MinC. E aqui não vai nenhuma crítica aos organizadores e manifestantes da ocupação que se mantém em vigília, ofertando ao centro do Rio, atividades diárias, mesmo após “a volta do MinC” como Ministério.
É preciso saber ler o gesto político de Caetano. Heroicizar nossos ídolos, no momento em que a democracia corre riscos, não é algo bom. Seria preciso separar as personas e passado artístico, não só de Caetano, obviamente, mas de outros também, como do Ignácio de Loyola Brandão, que declarou recentemente à Folha de São Paulo não ver problemas com o fim do MinC. O mesmo Loyola Brandão que escreveu um dos grandes romances da ditadura civil-militar, Zero, então, alvo da censura.
A partir dessas notas-provocações, seria interessante pensar como certa literatura acadêmica produzida sobre o período dos festivais da canção terminou por colocar de lado a canção de protesto sob a rubrica que todo artista teme: “datado” em comparação à Tropicália. Sem dúvida, o surgimento do movimento Tropicalista, as novas sonoridades, a proliferação de canções de altíssima qualidade melódica, imagética, a formação de uma cultura tropicalista, na qual é possível inserir o desbunde, são elementos que escaparam ao momento histórico, e soam frescos e desafiadores a cada nova escuta. Mas também é preciso voltar a olhar as plateias, as que tiveram suas vaias transformadas em poema por Augusto de Campos, e as que ficam foram do esquadro, gritando “Fora, Temer!”.
O “datado”, seja o grito, a vaia, o canto, pode ser justamente o necessário ao político em certas épocas. Acredito eu, infelizmente, estarmos passando por uma dessas épocas.
Notas provocativas sobre a política do canto
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- Categoria: Especial
- Escrito por Giovanna Dealtry