uniao popular poesia

Diante dos últimos acontecimentos, é preciso pensar na "hipótese da poesia", escreve Dora Ribeiro. Eis que decidimos então selecionar poemas que questionam o status quo, desafiam verdades institucionalizadas e, claro, aceleram o pensamento pela inesperada curva do afeto e da luta. Acima, a imagem da poesia urbana do poeta Sérgio Vaz. Abaixo, mais 20 poemas para levar no caminho. 

Uma canção popular (séc. XIX-XX) (Angélica Freitas)

uma mulher incomoda
é interditada
levada para o depósito
das mulheres que incomodam
loucas louquinhas
tantãs da cabeça
ataduras banhos frios
descargas elétricas
são porcas permanentes
mas como descobrem os maridos
enriquecidos subitamente
as porcas loucas trancafiadas
são muito convenientes
interna, enterra

Carta aos reitores (Antonin Artaud)

Basta de jogo de palavras,
de artifícios de sintaxe,
de malabarismos formais;
precisamos encontrar – agora –
a grande Lei do coração,
a Lei que não seja uma Lei, uma prisão,
senão um guia para o espírito perdido
em seu próprio labirinto.
Além daquilo que a ciência jamais poderá alcançar,
Ali onde os raios da razão se quebram contra as nuvens,
esse labirinto existe,
núcleo para o qual convergem todas as forças do ser,
as últimas nervuras do espírito

Discurso por ocasião de um congresso internacional de pessoas jurídicas (Bruno Brum)

Nunca conversei com uma empresa.
As empresas estão sempre ocupadas e não costumam
falar com estranhos.
Nunca trabalhei em uma empresa.
As empresas almoçam todos os dias no self-service mais
próximo e falam diversas línguas com perfeição.
Nas empresas há pessoas que seguram copos de uísque
como se segurassem caralhos.
Nas empresas há pessoas que se masturbam no banheiro
no horário do almoço.
Trabalho na mesma empresa há muitos anos.
Dormimos
na mesma cama e todas as noites ela abre as pernas para mim.
As empresas estão sempre abertas e de bom humor.
As empresas sempre dizem bom dia, boa tarde, boa noite.
Há sempre muitas empresas à disposição quando preciso, por isso não me preocupo.

As empresas dizem todos os dias que não devo me pre-
ocupar, mas eu já não me preocupava bem antes de elas
dizerem isso
As empresas sabem todos os meus segredos, mas não os revelam a ninguém.
As empresas sempre sabem o que fazer em qualquer situação.
Por isso não me preocupo.
Há pessoas que insistem em discutir o sexo das empresas.
E também as que preferem não tocar no assunto.
Empresas nunca ficam sem assunto. São capazes de conversar durante horas sobre qualquer coisa.
Empresas nunca perdem o sentido ou a razão.
Empresas nunca se atrasam.
Todos sabem onde vivem as empresas. Elas estão sempre abertas e de bom humor.
Trabalho na mesma empresa há muitos anos e até hoje não sei o seu nome, função, razão social ou CNPJ, mas não a culpo por isso.
As empresas estão sempre ocupadas, todos os dias, incluindo finais de semana e feriados religiosos.
Empresas possuem bordões e usam sempre as mesmas fantasias, como os super-heróis.
Empresas acabam e recomeçam todos os dias, como as novelas e os seriados.
Trabalhei em uma empresa durante dezoito semanas e faltei todos os dias.
Eu sei como funcionam as empresas, mesmo sem nunca ter estado nelas.
Empresas sempre funcionam.
Há pessoas que se dedicam ao estudo do comportamento das empresas.
Há empresas que se destacam por apostar no potencial das pessoas.
Geri diversas empresas imaginárias na infância. Nenhuma faliu.
As empresas podem ser de diversos tamanhos, como os cães, as pizzas e as estrelas.
Todos os dias acordo cedo e caminho até a porta de uma empresa, mas não entro.
Não tenho uma ideia clara do que possa ser uma empresa.
Algumas empresas se parecem com famílias.
Algumas famílias se parecem com empresas.
Especula-se a existência de empresas em outros planetas do Sistema Solar.
Estima-se que fóssil com idade aproximada de cinquenta mil anos possa pertencer à mais antiga empresa do mundo.
Empresas sempre dizem a verdade.
Empresas nunca se divertem.
Me lembro com nitidez da primeira vez em que conheci uma empresa.
Não costumo falar com empresas estranhas.
Nunca pisei em uma empresa.
Empresas não falam sozinhas.
Meu primeiro presente de aniversário foi uma empresa.
A maternidade onde nasci era na verdade uma empresa.
Algumas pessoas conversam com empresas como se fossem pessoas.
Algumas empresas conversam com pessoas como se fossem empresas.
Nunca conversei com uma empresa.
Nunca conversei com uma pessoa.

A noite não adormece nos olhos das mulheres (Conceição Evaristo)

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças

trecho do livro O poeta não existe (Dora Ribeiro)

dentro de muito poucas horas
a censura
sobre a nossa capacidade de predizer o futuro
cairá
e não nos restará proteção

leio isto num manual de instruções
e penso novamente na hipótese da poesia

Não te renda jamais (Eduardo Alves da Costa)

Procura acrescentar um côvado
à tua altura. Que o mundo está
à míngua de valores
e um homem de estatura justifica
a existência de um milhão de pigmeus
a navegar na rota previsível
entre a impostura e a mesquinhez
dos filisteus. Ergue-te desse oceano
que dócil se derrama sobre a areia
e busca as profundezas, o tumulto
do sangue a irromper na veia
contra os diques do cinismo
e os rochedos de torpezas
que as nações antepõem a seus rebeldes.
Não te rendas jamais, nunca te entregues,
foge das redes, expande teu destino.
E caso fiques tão só que nem mesmo um cão
venha te lamber a mão,
atira-te contra as escarpas
de tua angústia e explode
em grito, em raiva, em pranto.
Porque desse teu gesto
há de nascer o Espanto.

E para que ser poeta em tempos de penúria? (Fernando Monteiro)

Insepulta jaz a pergunta acima

e bem acima do motivo
supostamente íntimo
visto no verso de um dos últimos poemas de Roberto Piva.

A inquirição, franca, fende a fina porcelana de cera dos ouvidos. 

Sabemos da penúria,
porém não queremos saber dela.

Plantamos a flor carnívora,
mas desviamos a vista
quando o jardim do pecado
castiga com isso:
indiferença, acídia, tédio mortal
no peito de avestruzes
(os do estômago forte
para literatura feita
com lixo).

O poema (Lau Siqueira)

dentro de mim
morreram muitos tigres
os que ficaram
no entanto
são livres

Sem crime de responsabilidade (Líria Porto)

uma onda
daquelas devastadoras
que invadem além da praia
e causam tantos estragos
à vida do povo
um tsunami
é golpe

Quadrilha (Lívia Natália)

Maria não amava João.
Apenas idolatrava seus pés escuros
Quando João Morreu
Assassinado pela PM
Maria guardou todos os seus sapatos.

Defesa da alegria (Mario Benedetti)

Defender a alegria como uma trincheira...
defendê-la do escândalo e da rotina
da miséria e dos miseráveis
das ausências transitórias
e das definitivas
defender a alegria por princípio
defendê-la do pasmo e dos pesadelos
assim dos neutrais e dos neutrões
das infâmias doces
e dos graves diagnósticos
defender a alegria como bandeira
defendê-la do raio e da melancolia
dos ingênuos e também dos canalhas
da retórica e das paragens cardíacas
das endemias e das academias
defender a alegria como um destino
defendê-la do fogo e dos bombeiros
dos suicidas e homicidas
do descanso e do cansaço
e da obrigação de estar alegre
defender a alegria como uma certeza
defendê-la do óxido e da ronha
da famigerada patina do tempo
do relento e do oportunismo
ou dos proxenetas do riso
defender a alegria como um direito
defendê-la de Deus e do Inverno
das maiúsculas e da morte
dos apelidos e dos lamentos
do azar
e também da alegria

Instruções para esquivar o mau tempo (Paco Urondo)

Em primeiro lugar, não se desespere e em caso de agitação não siga as regras que o furacão quererá lhe impor.
Refugie-se em casa e feche as trancas quando todos os seus estiverem a salvo.
Compartilhe o mate e a conversa com os companheiros, os beijos furtivos e as noites clandestinas com quem lhe assegure ternura.
Não deixe que a estupidez se imponha.
Defenda-se.
Contra a estética, ética.
Esteja sempre atento.
Não lhes bastará empobrecê-lo, e quererão subjugá-lo com sua própria tristeza.
Ria ostensivamente.
Tire sarro: a direita é mal comida.
Será imprescindível jantar juntos a cada dia até que a tormenta passe.
São coisas simples, mas nem por isso menos eficazes.
Diga para o lado bom dia, por favor e obrigado.
E tomar no cu quando o solicitem de cima.
Dê tudo o que tiver, mas nunca sozinho.
Eles sabem como emboscá-lo na solidão desprevenida de uma tarde.
Lembre que os artistas serão sempre nossos.
E o esquecimento será feroz com o bando de impostores que os acompanha.
Tudo vai ficar bem se você me ouvir.
Sobreviveremos novamente, estamos maduros.
Cuidemos dos garotos, que eles quererão podar.
Só é preciso se munir bem e não amesquinhar amabilidades.
Devemos ter à mão os poemas indispensáveis, o vinho tinto e o violão.
Sorrir aos nossos pais como vacina contra a angústia diária.
Ser piedosos com os amigos.
Não confundir os ingênuos com os traidores.
E, mesmo com estes, ter o perdão fácil quando voltarem com as ilusões acabadas.
Aqui ninguém sobra.
E, isto sim, ser perseverantes e tenazes, escrever religiosamente todos os dias, todas as tardes, todas as noites.
Ainda sustentados em teimosias se a fé desmoronar.
Nisso, não haverá trégua para ninguém.
A poesia dói nesses filhos da puta.

Quando pela garganta (Paulo Colina)

Quando pela garganta
desce abrupta mão,
nenhum punho fechado pode
transmutar nosso canto livre
Em grito
Há sede é verdade,
esse ardor pelo espaço usurpado
e nervos
sem declinar de qualquer sentimento gentil
salvo a palavra bruta.
Tudo o que transporta o ar,
nós revelamos.
Sonhamos coisas que existirão,
ainda que você sempre duvide.
Nem todo o privado de visão é cego;
quem rala a alma pelo lado de fora
sim.
Ventre armazenado de calor.
Negro, a cor de princípios.

Manifesto (Falo por minha diferença) (Pedro Lemebel)

Não sou Pasolini pedindo explicações
Não sou Ginsberg expulso de Cuba
Não sou uma bicha disfarçada de poeta
Não preciso de disfarces
Aqui está minha cara
Falo por minha diferença
Defendo o que sou
E não sou tão esquisito
Me repugna a injustiça
E suspeito dessa dança democrática
Mas não me fale do proletariado
Porque ser pobre e bicha é pior
Há que ser ácido para suportar
É ter que dar voltas nos machinhos da esquina
É um pai que te odeia
Porque o filho desmunheca
É ter uma mãe de mãos marcadas pelo cloro
Envelhecidas de limpeza
Embalando a doença
Por maus modos
Por má sorte
Como a ditadura
Pior que a ditadura
Porque a ditadura passa
E vem a democracia
E desvia para o socialismo
E então?
Que farão com nossos companheiros?
Irão nos amarrar às tranças em fardos
com destino a um sidário cubano?
Irão nos enfiar em algum trem para parte alguma
Como no barco do general Ibañez
Onde aprendemos a nadar
Mas ninguém chegou até a costa
Por isso Valparaíso apagou suas luzes vermelhas
Por isso as casas de caramba
Brindaram com uma lágrima negra
Aos carneiros comidos pelos caranguejos
Este ano a Comissão de Direitos Humanos
Não lembra
Por isso companheiro te pergunto
Existe ainda o trem siberiano
de propaganda reacionária?
Esse trem que passa por suas pupilas
Quando minha voz fala demasiado doce
E você?
Que fará com essa lembrança de meninos
Nos pajeando e outras coisas
Nas férias de Cartagena?
O futuro será em preto e branco?
O tempo correrá noite e dia
sem ambiguidades?
Não haverá uma bichona em alguma esquina
desequilibrando o futuro de seu novo homem?
Vão nos deixar bordar pássaros
nas bandeiras da pátria livre?
O fuzil eu a você
Que tem o sangue frio
E não é medo
O medo foi indo embora de mim
Atacando com facadas
Nos inferninhos sexuais onde andei
E não se sinta agredido
Se te falo dessas coisas
E te olho o volume
Não sou hipócrita
Acaso os peitos de uma mulher
Não o fazem baixar os olhos?
Você não acredita
Que sozinhos na serra
Algo nos aconteceria?
Embora depois me odiasse
Por corromper sua moral revolucionária
Tem medo que se homossexualize a vida?
E não falo de te enfiar e tirar
e tirar e te enfiar somente
Falo de ternura, companheiro
Você não sabe
Como custa encontrar o amor
Nestas condições
Você não sabe
O que é carregar essa lepra
As pessoas ficam a distância
As pessoas compreendem e dizem:
É viado mas escreve bem
É viado mas é um bom amigo
Super-boa-onda
Eu não sou uma boa-onda
Mas ainda assim riem
Tenho cicatrizes de risos nas costas
Você acredita que eu penso com o pau
E que à primeira parrilhada da CNI
Eu ia soltar tudo
Não sabe que a masculinidade
Nunca a aprendi nos quartéis
Minha masculinidade me ensinou a noite
Atrás de um poste
Essa masculinidade de que você se gaba
Te enfiaram em um regimento
Um milico assassino
Desses que ainda estão no poder
Minha masculinidade não recebi do partido
Porque me rechaçaram com risadinhas
Muitas vezes
Minhas masculinidade aprendi militando
Na dureza desses anos
E riram da minha voz afeminada
Gritando: vai cair, vai cair
E embora você grite como homem
Não consegui que caísse
Minha masculinidade foi amordaçada
Não fui ao estádio
E me peguei aos trancos pelo Colo Colo
O futebol é outra homossexualidade encoberta
Como o boxe, a política e o vinho
Minha masculinidade foi morder as provocações
Engolir a raiva para não matar todo mundo
Minha masculinidade é me aceitar diferente
Ser covarde é muito mais duro
Eu não dou a outra face
Dou o cu companheiro
E esta é a minha vingança
Minha masculinidade espera paciente
Que os machos fiquem velhos
Porque a esta altura do campeonato
A esquerda corta seu cu flácido
No parlamento
Minha masculinidade foi difícil
Por isso não subo nesse trem
Sem saber aonde vai
Eu não vou mudar pelo marxismo
Que me rechaçou tantas vezes
Não preciso mudar
Sou mais subversivo que vocês
Não vou mudar somente
Pelos pobres pelos ricos
Ou outro cachorro com esse osso
Tampouco porque o capitalismo é injusto
Em Nova York as bichas se beijam na rua
Mas esta parte deixo para você
Que tanto se interessa
Que a revolução não se apodreça completamente
A vocês entrego esta mensagem
E não é por mim
Eu estou velho
E sua utopia é para gerações futuras
Há tantas crianças que vão nascer com a asinha quebrada
E eu quero que voem, companheiro
Que sua revolução
Dê a eles um pedaço de céu vermelho
Para que possam voar

A recessão (Pier Paolo Pasolini)

Reveremos calças com remendos
vermelhos pores do sol sobre as aldeias
vazias de carros
cheias de pobre gente que terá voltado de Turim ou da Alemanha
Os velhos serão donos de suas muretas como poltronas de senadores
e as crianças saberão que a sopa é pouca e o que significa um pedaço de pão
E a noite será mais negra que o fim do mundo e de noite ouviremos os grilos ou os trovões
e talvez algum jovem entre aqueles poucos que voltaram ao ninho tirará pra fora um bandolim
O ar terá o sabor de trapos molhados
tudo estará longe
trens e ônibus passarão de vez em quando como num sonho
E cidades grandes como mundos estarão cheias de gente que vai a pé
com as roupas cinzas
e dentro dos olhos uma pergunta que não é de dinheiro mas é só de amor
somente de amor
As pequenas fábricas no mais belo de um prado verde
na curva de um rio
no coração de um velho bosque de carvalhos
desabarão um pouco por noite
Mureta por mureta
Teto em chapa por teto em chapa
E as antigas construções
serão como montanhas de pedra
sós e fechadas como eram uma vez
E a noite será mais negra que o fim do mundo
e de noite ouviremos os grilos e os trovões
O ar terá o sabor de trapos molhados
tudo estará longe
trens e ônibus passarão
de vez em quando como num sonho
E os bandidos terão a face de uma vez
Com os cabelos curtos no pescoço
e os olhos de suas mães cheios do negro das noites de lua
e estarão armados só de uma faca
O tamanco do cavalo tocará a terra leve como uma borboleta
e lembrará aquilo que foi o silêncio o mundo
e aquilo que será.

Conheço vocês pelo cheiro (Ricardo Aleixo)

Conheço vocês
pelo cheiro,

pelas roupas,
pelos carros,

pelos aneis e,
é claro,

por seu amor
ao dinheiro.

Por seu amor
ao dinheiro

que algum
ancestral remoto

lhes deixou
como herança.

Conheço vocês
pelo cheiro.

Conheço vocês
pelo cheiro

e pelos cifrões
que adornam

esses olhos que
mal piscam

por seu amor
ao dinheiro.

Por seu amor
ao dinheiro

e a tudo que
nega a vida:

o hospício, a
cela, a fronteira.

Conheço vocês
pelo cheiro.

Conheço vocês
pelo cheiro

de peste e horror
que espalham

por onde andam
– conheço-os

por seu amor
ao dinheiro.

Por seu amor
ao dinheiro,

deus é um
pai tão sacana

que cobra por
seus milagres.

Conheço vocês
pelo cheiro.

Conheço vocês
pelo cheiro

mal disfarçado
de enxofre

que gruda em
tudo que tocam

por seu amor
ao dinheiro.

Por seu amor
ao dinheiro,

é com ódio
que replicam

ao riso, ao gozo,
à poesia.

Conheço vocês
pelo cheiro.

Conheço vocês
pelo cheiro.

Cheiro um e
cheirei todos

vocês que só
sobrevivem

por seu amor
ao dinheiro.

Por seu amor
ao dinheiro,

fazem até das
próprias filhas

moeda forte,
ouro puro.

Conheço vocês
pelo cheiro.

Conheço vocês
pelo cheiro

de cadáver
putrefato que,

no entanto,
ainda caminha

por seu amor
ao dinheiro.

velozes e furiosos 7 (Rubens Akira Kuana)

não é de toda
força ou modéstia
que se faz uma canoa

você encontra
uma canoa e deseja
rebaixá-la
levá-la junto com sua família
adotiva

this is brazil

escuta em um trailer
após o jogo
condecorativo
hoje
a floresta Amazônica
está pronta

para receber eventos
deste porte
uma proliferação
de agências de turismo
mosquitos
mordaças

sua família está a salvo
sua reputação está a salvo
seu investimento está a salvo

this is brazil

você cria um alter ego
silvio santos
explode cais e banco
com as mãos atadas
tira a camisa e resgata

o ritual
uma aldeia
o clube inteiro

compartilha

porque todo homem é um totem

pela safra seguinte
já constrói canoas
penhora-as e reclama
o reembolso

estes remos não remam
estes jeans encolhem
rápido, melhor
cultivar algodão transgênico
exigir cosméticos
mercenários
1, 2, 3
mas oi

peguem logo
os seus malditos macacos

this is brazil

cadê dinheiro

História e consciência de classe (Sebastião Uchoa Leite)

Prazer em conhecê-lo sr. leite
o senhor
é da classe dominante?
não sou apenas
uma barata sem antenas
que ignora
as taxas de risco
e o índice dow jones
enfim
um morcego de botequim
sem radar
que marcou bobeira
na maxidesvalorização cambial

Agora não se fala mais (Torquato Neto)

Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início:
Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.
Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:
só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo:
não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido.)
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento

Possibilidades (Wislawa Szymborska)

Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos sobre o Warta.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro-me gostando das pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulhas e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não achar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, os aniversários não marcados,
para celebrá-los todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui
a muitas outras também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
do que postos em fila para formar cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
do ser ter sua razão.