O sopro de vitalidade que, ainda hoje, A Emparedada da Rua Nova promove naqueles que leem as suas páginas — o que a leva a ser reeditada e, a cada reedição, ter os seus volumes esgotados —, passa pelos ingredientes que a compõem. (...)Primeiro, a forma do romance-folhetim; segundo, a estrutura do romance policial; terceiro, a figura de um sedutor compulsivo (Leandro Dantas), ao modo de Don Juan; quarto, crimes, traições maritais e descrições minuciosas do cotidiano social, político, religioso, e dos preconceitos sociais, linguísticos e de raça do seu tempo.
Quanto ao primeiro ingrediente — a forma do romance-folhetim —, vamos também encontrar n’A emparedada, assim como nas obras daqueles que são os modelos literários de Carneiro Vilella (os escritores franceses Eugène Sue e Ponson du Terrail), o deslocamento constante entre o tempo, o lugar e a ação da narrativa. Tais deslocamentos levam o narrador a passar da ação de um personagem, ou de um episódio, para outro; de se transferir no tempo (avançando e recuando nos anos, voltando ao passado para explicar o personagem, a ação e o tempo presente da narrativa); de entrecruzar vários enredos, valendo-se de uma estrutura sinusoidal, que vai mudando a linearidade da ação. O resultado de todo esse deslocamento, leva o leitor a experimentar uma ansiedade (psicológica) quanto ao próximo capítulo da obra e, principalmente, quanto ao desenrolar daquela sinuosa narrativa: construída dentro de uma dialética entre a tensão e o desenlace.
Apesar desses procedimentos formais e estruturais de A Emparedada da Rua Nova serem os mesmos que vamos encontrar nas obras de Eugène Sue e Ponson du Terrail, a obra de Carneiro Vilella se distingue das dos seus mestres franceses em três pontos.
Primeiro, ele não faz uso da emoção para construir falsos reconhecimentos, criando peripécias que em nada resultam no desenvolvimento da ação, ou mesmo construindo os capítulos em estrutura sinusoidal com o único propósito de apenas entreter o leitor. Apesar de cada capítulo de A Emparedada ser estruturado dentro da dialética entre tensão e desenlace da ação, todos eles trazem informações que levam o leitor a desvelar os fios dos vários enredos que compõem a narrativa.
Segundo, se Eugène Sue e Ponson du Terrail, como bons românticos, ainda acreditavam nos bons sentimentos de alguns dos seus personagens e no final feliz que o destino lhes reservava, Carneiro Vilella não se deixa levar pelos reducionismos maniqueístas do bom e do mau, do mocinho e do bandido (todos os seus personagens têm desvios morais, por menor que sejam). Daí porque o romance tem início com um relato de um crime bárbaro e se conclui com a prática de outro não menos terrificante. Quanto à existência ou não de um final feliz, não irei tirar aqui a surpresa que o texto reserva ao leitor.
Terceiro ponto: se, como diz Umberto Eco, “o autor de um romance popular jamais encara problemas de criação em termos puramente estruturais (’Como fazer uma obra narrativa?’) mas em termos de psicologia social (‘Que problemas é preciso resolver para construir uma obra narrativa destinada a um vasto público e visando a despertar o interesse das massas populares e a curiosidade das classes abastadas’?)”, Carneiro Vilella, percorrendo um caminho inverso, não só subordina a psicologia social às questões estruturais da narrativa, como se vale desse recurso narrativo de se deslocar no tempo e no espaço, em um processo sinuoso que desarticula e rearticula o lugar e a ação do enredo, para construir o seu discurso e fazer as suas objeções aos maus costumes da vida brasileira e aos vícios da natureza humana.
Mas a forma do romance-folhetim n’A Emparedada é perpassada também pela estrutura do romance policial. Paralelo às estórias de adultério, às conquistas de um Don Juan tropical, e às peripécias de um amor impossível, temos, em um segundo plano narrativo, um enredo que vai unir as duas pontas do romance: a estória do misterioso cadáver, em avançado estado de putrefação, que é encontrado nas terras do Engenho Suaçuna (sic), na cidade de Jaboatão. Esse mistério, que perpassará todo o romance, e que é construído em cima da estrutura clássica do romance policial (“o problema, a solução inicial, a complicação, o estágio de confusão, as primeiras luzes, a solução e a explicação”), não só fornece um dos fios condutores da obra, como é responsável por promover um mito que recai sobre o romance de Carneiro Vilella: a estória aqui narrada se baseia ou não em fatos verídicos? A dúvida não é retórica, pois ela é promovida pelo próprio narrador ao se valer de dois procedimentos formais. O primeiro deles, é que a estória do cadáver que aparece no Engenho Suaçuna não é fantasiosa, ela, de fato, ocorrera e fora noticiada pelo Diario de Pernambuco na data que encontramos no Primeiro Capítulo do romance: terça-feira, 23 de fevereiro, de 1864. (...) No segundo procedimento, que lemos no penúltimo Capítulo da obra, somos informados que a fonte da estória que nos é narrada vem de uma ex-escrava — Joana — que “no ano de 1884 foi, na Corte, criada do autor destas linhas”. Não só: “é às suas informações que se deve o conhecimento exato de parte das cenas íntimas e violentas da família Favais”. E, aqui, fato e ficção, mais uma vez, se confundem: Carneiro Vilella residiu no Rio de Janeiro entre os anos de 1879 e 1886. Assim como a notícia do crime ocorrido em fevereiro de 1864 é crível, também é crível que o autor da obra viveu e trabalhou na Corte no mesmo período em que os fatos, supostamente, foram-lhe contados. Desse modo, os limites, aqui, entre autor (“função social e extralinguística”) e narrador (“função puramente linguística”) se dissipam, pois o narrador deixa de ser um personagem de ficção para assumir uma condição extralinguística: a do autor. E aqui temos dois pontos a salientar.
Primeiro, ao plantar indícios de que ele — Carneiro Vilella — seria o próprio autor da sua narrativa, somos levados a crer que a narrativa que estamos a ler é verdadeira por se apoiar em testemunhos documental e oral. Do mesmo modo que um texto não ficcional se firma em um referente, pois o fenômeno que lhe serve de objeto de análise e interpretação se plasma na realidade empírica, a narrativa deA Emparedada também busca fontes documentais que lhe fundamentem. O romance de Vilella, dentro do espírito do cientificismo que pautou a Escola do Recife, parece submeter a sua ficcionalidade aos pressupostos científicos.
Segundo, ao afirmar que “é às suas informações [as da ex-escrava Joana] que se deve o conhecimento exato de parte das cenas íntimas e violentas da família Favais”, o narrador parece que quer se resguardar de qualquer acusação que venha a colocar em questão a veracidade ou não do seu relato. Ou seja, ao tempo que ele submete a ficcionalidade da sua obra aos parâmetros de veracidade do cientificismo (“o caso eu conto como o caso foi”), ele, em contraposição, parece colocar em suspensão a própria veracidade da sua fonte (“o caso eu conto como me foi contado”). Se, por um lado, A Emparedada parece diluir os limites entre autor/narrador, por outro, em contraposição, a estória que nos é contada parece recuperar o estatuto ficcional da narrativa ao atribuir a sua fonte a um narrador — Joana — que pode ou não ser uma fonte fidedigna, que pode ou não estar fantasiando sobre o passado. Mais: se é Carneiro Vilella que narraA Emparedada, ele constrói essa narrativa a partir de uma outra narrativa, resgatada oralmente, por meio do recurso da memória, 20 anos depois dos fatos ocorridos. Logo, Carneiro Vilella, muito habilmente, desloca a relação autor/narrador para a relação de segundo narrador (Vilella)/primeiro narrador (Joana). Entre a sua narrativa e a narrativa primeira que foi resgatada da memória de Joana, dá-se uma tensão dialética entre linguagens (oral/documental), o que permite ao narrador construir, dentro do espaço romance, a fantasia, a matéria ilusória, a mímesis e a ficcionalidade. Ao leitor, cabe agora acatar o pacto que lhe é proposto pelo narrador: o de que n’A emparedada, apesar de ter sido “fiel” às informações de Joana para as “cenas íntimas e violentas da família Favais”, ele, o narrador, precisou recorrer à imaginação para compor os demais enredos que formam a estória do romance.(...)
* O texto é uma versão adaptada do prefácio presente na nova edição da obra.