Ilustração por Karina Freitas

 

1.

No primeiro instante da entrevista sobre a adaptação de meu romance ao cinema (o romance e o cinema serão sempre antípodas) eu disse à repórter: “O romance e o cinema são gêneros irmãos”, e ela anotou isto numa caderneta lilás. Depois, acenou para trás da câmera, à nossa frente, e se explicou: “É melhor gravarmos logo”.

 

2.

Uma criança corre atrás de um coelho pardo. Seus pés batem na terra com a força de uma competição; tiram dali o som de um tambor cuja pele fosse de veludo. Tufe, tufe, tufe... A criança segue até um cais, onde então para e olha ao longe. É um menino. Agora o vemos de perto. Ele levanta um braço e observa o coelho pendurado pelas orelhas. Olha-o com orgulho, como se ali estivesse um irmão menor, fugido. Não fica claro como o apanhou com as próprias mãos. Talvez este seja, na verdade, um segundo coelho. Ou esta, a perseguição de outro dia.

 

Está obviamente chovendo. Do alto de Olinda vemos dois largos rios, de águas castanhas, abraçados ao Recife. Vemos esses rios de longe. Suas margens são recortadas por uma vegetação densa, e eles serpenteiam. A chuva cai como um véu que apaga o horizonte por cima dos prédios. Parece triste. Thoreau, os Alpes, Euclides da Cunha.

 

Agora, letras formam nomes imensos por cima dos rostos de homens e mulheres à beira do cais. Há muito movimento ali. Alguns levam baldes; outros, até cargas de roupa na cabeça. Por perto também circulam crianças, mas não é possível distinguir se o garoto do coelho está entre elas. Provavelmente, não. Afinal escuta-se, sob a trilha sonora, o ruído ambiente. Soa um riso, ou um grito, e as coisas começam a se distanciar. Digo, a imagem. O que vemos não é a realidade, é uma mera imagem, e neste momento ela está cada vez mais distante. Voltamos ao topo de uma colina e, de lá, novamente vê-se um pedaço de rio como o traço de uma cobra; como se o horizonte, dobrado por um espelho, se arriscasse num jogo. Esse leito corta o plano da tela, vai de canto a canto. No meio dele, como a atividade de uma mosca, há algo que parece vivo. Talvez uma falha na película? Claro que não. Trata-se de um barco; uma jangada que se move com gente dentro. Se ela se move, deve vir com gente dentro. Mas é impossível ter certeza. A legenda mostra apenas, por cima de tudo, do rio, o imenso nome do diretor deste filme, Christopher M. Talitas.

 

3.

A câmera de Talitas apanha Jurandir e o Ramires, meus protagonistas, em tomadas curtas; ao fundo, apenas lances do porto e dos prédios. O close-up adora seus rostos engelhados, os dois vão sentados à beira de um canal, comendo sanduíches embrulhados numa toalhinha de pano.

 

Num dos flashbacks que sobreviveu ao corte, vemos a água chegando às prainhas por baixo das pontes, indo molhar troncos de árvores e arbustos. De vez em quando, um pássaro levanta voo e o poderoso foco do zoom o acompanha. Por que Talitas iria querer revelar o entorno natural de uma ação que é urbana? Seus intérpretes de Jurandir e do Ramires, acomodados numa lotação rumo ao centro do Recife, discutem a solidariedade e o assassinato. Compartilham músicas. Não creio exagerar quando digo que essas cenas, a perspectiva delas, somos nós. Estamos olhando em volta do desastre, nunca diretamente para dentro dele. Seria insuportável. Nem sequer a arte consegue fazer do horror uma presença ao alcance das mãos.

 

Na vinheta promocional, além do menino agarrado ao coelho, e das cenas aéreas de uma Kombi correndo paralela ao rio Capibaribe, Talitas faz com que Jurandir baixe a cabeça e beije o seio de uma colega de trabalho, Minie. A atriz que faz o papel é jovem; tem os cabelos curtos e olha com doçura seu companheiro de cena sugando-lhe o mamilo alvo, bem mais alvo do que imaginei serem os da minha pequena Minie. Aqui, os cortes são abruptos. A iluminação parece insegura. Durante sua internação, ensaiando o papel de um líder messiânico numa peça de arte-terapia, Jurandir confirma a presença do autoritarismo, e discute a prédica dos políticos milagreiros das regiões “mais quentes”. Mas lembremos que o diretor, auteur, é norte-americano. É provável que, na adaptação de meu romance, querendo evocar a vergonha da guerra entre os EUA e o México, o Vietnã ou o Oriente Médio, Talitas tenha posto na cabeça a forma infausta de um Glauber Rocha.

 

4.

Costumo evitar conferências acadêmicas. Mas Los Angeles atrai gente que trabalha com cinema, e aconteceu que, há alguns anos, Chris M. Talitas veio fazer uma visita à minha universidade. Era o homenageado. Deram-lhe um belo microfone, para as respostas. “A sétima arte e o mundo de hoje”, um tema difícil. E eis a primeira contradição: a rigor, seus filmes não são sobre o mundo de hoje. Acontece que Talitas faz boa figura; é alto, olhos azuis, apertados; o cabelo grisalho ainda parece louro; a boca é fina. Trajava um blusão jeans e calça marrom, com uma mochila contendo aparatos de observar passarinhos; afinal, vinha para a Califórnia. A mochila foi ao palco, então o moderador comentou esse hobby. Naquela altura, ele ainda não havia adaptado meu romance. Perguntado sobre o cinema, Talitas demorava a responder; enrugava o rosto, alongava a pausa na frase interrompida. Tomava um tempo imenso antes de cada opinião. Ia rir? Chorar? Sair do palco? Se saísse, teria havido uma revolução no campus.

 

Jurandir agora retoma suas recordações. Na tela de um cinema grande, dos antigos, seu rosto teria o tamanho de um prédio de dois andares. Ora, os motivos de uma guerra são muitos; os do amor, mais ainda. Nosso herói, interpretado em toda sua intensidade pelo grande ator irlandês Phil Daddario (A Round of Visits, Nostromo, Fifth Avenue, entre outros), exige uma resposta do advogado que bloqueou um recurso de amparo ao trabalhador desfigurado. Estão bem perto um do outro. Seus rostos quase se tocam. Uma mão de Jurandir chega até o birô, e o bacharel recua com asco. Ainda não era uma mão de sangue. O herói, então, tira da mochila um revólver. E a mesma mão que puxa essa arma puxou, anos antes, de dentro do pijama de seu amigo um pênis reluzente, com sua glande rosada e curiosa do mundo.

 

5.

Os detratores de Chris M. Talitas não aceitam que seu cinema pertença à arte do abstracionismo. As resenhas negativas são pautadas pela incompreensão: “Shakespeare beócio”, “Monótona ladainha”, “Oco barroco”, “Guerra grandiloquente”, “O reino do palavroso” e “Elite na tela”, cujo título sequer faz sentindo, equivocam-se ao equacionarem a consecução em arte a uma total economia de meios verbais. A ser justa tal tese, os artistas acabariam, simplesmente, jornalistas. A arte do menos, o credo do less is more e a retórica do understatement anglo-saxão não resistem a um exame detido. E Whitman? E Faulkner? E Woodstock?

 

(Comentei isso em sala. Uma aluna, impressionada, aproximou-se; então fizemos amizade. Fomos juntos a um filme de Talitas e, depois, a outros. Daí, demos as mãos. Ela foi generosa por vontade própria. Não há nada tão doce quanto o rapto estético. Ver um filme com o coração na boca nos dá nova perspectiva. Até vemos mais. O rigor da crítica é uma paixão; o fim dela está no puro desencantamento do mundo. Rompemos, finalmente, eu e a tal, chorando abraçados na entrada de um cinema de arte. Que filme era esse, eu não lembro mais.)

 

Na entrevista, a repórter insistia: “Lantânio, no seu romance, é Lampião?”, “Jurandir é mesmo um homossexual?”, “O rapaz do rosto queimado é como um filho para ele?”, “Você é avesso à psicanálise?”, “E os seus personagens?”

 

Ao contrário da dramaturgia de hoje, Talitas se define como um revolucionário romântico; “the most exagerated man I have ever met”, escreveu certa vez um dos seus biógrafos. E, a propósito, minha amiga Barbara Heliodora já apontou: “Com efeito, Talitas usa o princípio psicológico de que, se um perfume ou uma melodia podem lembrar um drama, a precisa imitação de um drama também pode lembrar o perfume ou a melodia”. Ofereço como evidência disso, avivada no escuro de um auditório com ar-condicionado, a fragrância de quem nos acompanha a um filme; a mão de uma aluna apertando a minha no momento em que, na tela, Jurandir (aliás, Phil Daddario) dispara o primeiro tiro na mandíbula do advogado. Neste momento, já ouvi expectadores aplaudirem a cena.

 

6.

A obra de Talitas é mais importante do que a minha, não há dúvida. Mas resta a história que eu imaginei. No livro, Jurandir faz uma viagem em missão que ele se impõe: amparar na lei um funcionário após um acidente de trabalho. Mas meu pequeno salvador acaba confundindo seus demônios: mistura a amante com a morte do filho, e a sua ligação ao dono da empresa com a fidelidade a seus iguais. Há em Jurandir certa nesga de consciência de classe — para usar um jargão de antes... Porém, mesmo tal inclinação é vivida mais no plano dos sonhos. Anotando-se em cadernetas que deveriam refletir sua rotina diária e sonhada, ele destila a limitação de seus modelos, a fragilidade dos afetos, o invisível na culpa que se escamoteia em esforço de resgate do outro. Escrevi O sonâmbulo amador entre 2006 e 2012, tentando tornar evidente, para mim, laços de amizade nos seus desdobramentos erótico, doméstico e político. Aqui estão a amiga tornada amante, o companheirismo de que se nutre a família e, também, as apostas que fazemos em sonhos pertencentes a outros, e que ainda são, em grande medida, coletivos.

 

Mas agora, cinco anos passados, com a saída da versão de Talitas, nada mais interessava à repórter: “E o filme, você acha que ele é fiel?”

 

“Fiel a quê?”, eu disse. “Minha filha, será que uma projeção de luz e sombras, numa parede, pode ser fiel a alguma coisa? Isso não tem o menor sentido”.

 

Lá de trás um jovem diretor, a quem eu não tinha sido apresentado, parou a gravação. A entrevista, afinal, nunca foi exibida. Semanas depois, recebi o cachê com uma nota dizendo que o material está “reservado à transmissão em grade futura”. Grade futura? A quarta maior emissora do mundo, e produtora que lidera o mercado de cinema no país, não vai colocar no ar uma voz descrente na adaptação da literatura à tela. Com o cachê, comprei a terceira edição das Reflexões sobre a vaidade dos homens, de Matias Aires, publicada em 1778 pela tipografia Rollandiana. Nela consta a famosa Carta sobre a fortuna, que então acabava de ser revelada, postumamente, por um filho fiel ao desejo de seu pai, o autor.