1. O primeiro volátil chegou nesta minha dimensão de treva com cartas que retratam damas vestidas de roxos túrgidos, como carnes secretas, um homem, uma mulher, a noite que nestas latitudes cai de repente e, nisto, José, passaram-se dez anos desde o dia em que deveríamos ter nos conhecido na Califórnia, sua última carta me tocou profundamente, mas permita que antes lhe diga uma coisa, não acredite muito no que afirmam os escritores, eles mentem, é uma cerimônia símile ao striptease, talvez os escritores tenhamos simplesmente medo, o resto são nuvens, por exemplo, tenho um romance ausente com uma história que quero contar, não fantasmas meus, apenas presenças penadas, em cada esquina a companhia de fantoches, com eles virá um dia lindo, tenha certeza, ou melhor, diria até que já é verão, mesmo da treva é impossível não reconhecer o verão, acontece que quem escreve não é confiável, já disse, e receio que ainda esta noite tenhamos mau tempo.


2. Agora que o corpo é fonte de sentido e a alma fonte do mal, tudo o que disse ou disser já está dito e redito pelos moralistas do mundo, por exemplo, a pedra e o cão dão sinais de melancolia, e também a frase viver entre dois mundos é uma vantagem, frase que é sua, talvez seja mentira, ainda não foi provada, resta apenas saber como, em qualquer que seja esse mundo, dos olhos nascem mágoas e do cão o rabo ventila igualmente as moscas e as queixas de seu dono, ora, na metade do céu o segundo volátil me disse justamente isso, a dúvida te visitará de novo, Antonio, e lhe respondi que a verdade é que já gosto deste país, porém a vida, José, eu lhe digo, é preciso saber levá-la, pois sei que não se deve escrever aos mortos, mas você também sabe perfeitamente que em certos casos escrever aos mortos é apenas uma desculpa.


3. Nesta região de serras em que não mais ando só, minha companhia de fantoches está indiferente aos rigores do tempo, ao desatino do comércio, pois nenhuma relação existe entre o doce e a raça e, como a mim, a dúvida também o apanhará em casa, meu colega, e com ela virá o tédio da dúvida, aliás, a propósito disto, lembro que o terceiro volátil me veio na semelhança de um pequeno leão branco com o rosto de uma atriz havaiana, os seus mamilos apontados e castanhos, e também um pênis discreto conforme a delicadeza dos gatos, ela ou ele me falava como a Calipso que segue o vácuo do eterno e vê seu marinheiro desmoronar buscando o avesso do próprio eterno no colo de outra mulher, imite a paixão de D. Pedro por Inês de Castro, o volátil me falou, na ampliação do ruído tu anulas o banal, era a realidade fora da realidade, José, nossos olhares devolvidos, enfim, naquela noite quente me vinha o rancor da geladeira, que estancava apenas para recomeçar sua sanha de conselhos, e dali o terceiro volátil súbito chegou mais perto, como num sopro, e disse que o espanto condensado no homem era realmente o único gelado de Deus.

 

4. O professor Klopp, de Ohio, está certo, essas vozes, outras vozes, como recuperá-las da garganta banal da história, dos jornais, dos televisores?, mas também penso no oposto, o que será que o próprio professor Klopp vai dizer quando lhe aparecerem os seus voláteis?, provavelmente nada, disto tenha certeza, a maioria permanece em silêncio e assim chega a negar essa presença, por exemplo, José, se tivéssemos nos encontrado na Califórnia você talvez me dissesse, num café, bem aqui, Antonio, Foucault costumava comer os seus sanduíches, ora, esta frase é um volátil, e como não?, com seu rostinho aberto a direções contrárias, mascando as oportunidades possíveis, convenhamos, meu colega, aquele nosso desencontro foi minha quarta criatura, você com o réquiem de Pessoa a postos para uma aula, parecia um jovem professor Klopp, espero que me desculpe a graça, agora brinco, é que morri, e Klopp confirmou o fato no New York Times de 4 de abril, com sua lisonja de sempre comentou o seguinte, Antonio é único, diferente dos seus conterrâneos, interessado que está na traição, no remorso, no perdão, enfim, interessado que estou no pecado, ele disse, e nisto somos parecidos, pena que eu, você e Klopp não possamos sair para jantar juntos, pediria sardinhas com batatas, azeite e vinho verde, pois morri, José, morri e ainda me apetece o cardápio frugal de um verão português.


5. Meu caro, se os voláteis lessem, eis o que escreveria a um deles em particular. Querido volátil número cinco, lembro que naquele dia acordei misturado às noções que a noite fabrica, estava em casa, cedo ainda, na casinha onde morei quando não tinha deixado a família, em Pisa, onde meu pai comerciava cavalos e os alemães batiam os coturnos em meio às bombas aliadas, isto era no meu tempo de miúdo, de repente você chega voando, acompanhado, fiquei surpreso com a visita, eram um casal?, pedi que entrassem e fui ao banheiro me olhar no espelho, estava de pijamas, com uma camiseta branca e calças azuis, meu rosto parecia o de alguém que acabava de ter acordado, por algum motivo não conseguia trocar de roupa, então fui para sala conversar, lembro que era uma conversa sem razões nem lamentos, apenas a vontade de falar, verdade que não conseguíamos dar início à prática, pois logo me fixei no sexto volátil, o seu companheiro de olhinhos escuros, penas pretas e chapéu de feltro lançando sombras variadas no chão, às vezes um volátil é um pequeno coro, fiquei contente, os meus tios também estavam ali, e outras pessoas vinham chegando, a casa agora parecia cheia, nossa conversa precisava esperar, então fomos dormir, creio que vocês foram para uma árvore ou ficaram pela sala, não sei, fui para o meu quarto, deitei na cama e fiquei escutando as bombas destroncando a minha cidade e os alemães, ouvi isto por vários anos, até conseguir pegar no sono.


6. No dia seguinte só restava o volátil número seis, tímido e com as suas muitas sombras, então saímos para tomar um táxi que virou um comboio, a paisagem lá fora era estranha, não tinha bem certeza onde era, saltamos na estação à beira de uma ponte e começamos a andar entre uma multidão de pessoas apressadas, cruzando por cima de um rio caudaloso e de um verde profundo, logo que saímos da estação, eu havia notado o clima mais quente e o dia claro, ventava bastante, a ponte era alta e levava os passantes até uma cidade ao pé de uma colina, no meio da travessia paramos para apreciar a paisagem e me dei conta de onde estávamos, era Lisboa, mas uma Lisboa diferente, menor, de bonecas, então olhei para o meu volátil, mas ele continuava calado, o vento tinha assanhado suas penas escuras, estendi a mão em sua direção, tinha medo de que ele me desse as costas ou levantasse voo, tudo me soava frágil, eu queria apenas afastar as sombras que o vento espalhou e estavam lhe cobrindo o rosto por baixo do chapéu, pensava que sua memória de outros brutos, que precisam alcançar, por conta própria, a bruma do corpo, faria com que meu sexto volátil tivesse alguma desconfiança de mim, mas não, cheguei com a ponta dos dedos até o seu rosto e lhe clareei os olhinhos por trás das penas, lembro que na hora elas me pareceram grossas, cheias daquela trama delicada, como se fossem cabelos, e com isto deixei de notar o calor, o vento, as pessoas, olhei em volta e decidi lhe contar uma coisa nova, diferente, sobre mim, que não havia mencionado antes, achava que seria uma surpresa, mas o volátil me disse que não, que ele já me conhecia muito bem, depois sorriu, e só então iniciamos a nossa longa conversa.


7. Neste instante, em que aguardo a sétima e derradeira criatura, que talvez nem seja fêmea, digo que não basta estar vivo, pois pode-se estar vivo e ser inocente, e um olhar inocente nada vê, ora, e entre o que mais quis ver está um país de barcas, autos e cantigas, agora fechemos os olhos, José e meus voláteis, quem quiser ver de Antonio uma excelência, onde sua fineza mais se apura, perpétuas saudades me tenham, que tudo muda uma áspera mudança, e afinal falem de mim como sou e nada menos, nem soado em qualquer malícia, digam de alguém que amou com palavras, porém nunca demais, alguém sem zelo fácil, mas se alarmado perplexo ao extremo, alguém cujas mãos, como as do navegante, buscaram fora uma terra mais rica que a de seus pais, alguém que de olhos saudosos, embora estranhos ao humor dissolvente, vigiou os homens e as suas histórias tanto quanto as figueiras que entornam uma pele de goma alva e mendicante.

 

A nosso convite, José Luiz Passos escreveu esse necrológio ficcional para lembrar o italiano Antonio Tabucchi, o mais internacional dos escritores europeus.