Vou precisar detalhar porque é nos detalhes que está o todo. É por isso que me ponho aqui, nessa recuperação/ invenção. Preciso ver. E vejo melhor enevoada, pelo chope, pela fumaça, em meio às buzinas da avenida do centro da cidade, espantosamente raras. Há uma concordância, uma aquiescência com o engarrafamento, com os ônibus à toda que pegam o sinal já fechando, fechado. Todos sabem, esperam, este não vai parar. E seguram as sacolas do fim de tarde, da ida para casa, a concordância também nisso, de que é preciso comprar o pão, o presente, o papel higiênico. É nos detalhes que tenho a esperança esteja o todo que busco. Este, privado daqueles, esfarela-se. Não. Para isso ele teria de existir antes dos detalhes que se lhe agregam, ser sustentado por eles. E é o contrário. É a partir deles que monto um todo que ainda não sei qual vai ser e do qual dependo para decidir se vou para um lado. Ou outro. Se continuo, ou sumo.
Voltando então aonde estava. Eu estava com mais uns nada ou pouco mais do que nada.
A nudez de Rose. A nudez de Rose surge - e escolho o que se segue como escolheria feijão, se feijão ainda se escolhesse, este grão e não o outro.
A nudez de Rose surge de algo anódino, decido. Ou adivinho. Este grão e não o outro. Por exemplo, há um raio de sol que bate no sofá e que o manchará caso nenhuma providência seja tomada. Contar com Arno para uma providência é disparate que Rose aprende cedo a não fazer.
Então, senta no raio de sol.
Pronto, o sofá não mais manchará.
Sentada, outra ideia lhe surge: fazer com que o calor atinja, sem obstáculos, o seu sexo, onde calores se encontram, há tempos, ausentes.
Levanta a saia.
É pouco. Em outro dia, já vem sem roupa de baixo.
Mais dias, e Rose certificase de que estar sentada sobre o sol não provoca mudança alguma no universo. Tira então a saia. O sol se move durante tais sessões, atinge barriga, atingiria seios. Tira o sutiã.
A roupa fica por um tempo sempre ao alcance de sua mão, por segurança.
Um dia ela cai em si e ri, segurança, rá.
Escala.
A roupa passa a ficar no quarto, dobrada, em perfeita ordem, um escárnio em relação à desordem que se passa na sala, braços e pernas em descompasso. Piruetas. E aí ela chega ao sofá para descansar, ofegante. E o sol no sexo.
Nunca a interrompem?
Sim, um dia, a empregada.
A empregada sai da cozinha. Fala uma frase onde entra: o jantar, o sabão, o forno; e algum verbo como: fazer, comprar, limpar. Por baixo de suas palavras, outras, não ditas: o que Rose estaria fazendo nessas tardes de sol e de silêncio, na sala. A empregada sai da cozinha, vê o que vê, fala o que dá, e nunca mais olhará Rose nos olhos. Uma vez a porta da cozinha fechada, Rose ri, as pernas abertas, mais sol, mais sol, ah, mais sol.
Não sei se eu disse, ela é alemã.
Mais dias. Agora Rose, prática, adianta providências em suas tardes de sol. Não mais danças, mas andanças. Ela branca, os móveis quase pretos, ela se debruça neles para acrescentar um ítem no rol da lavadeira, para costurar uma rendinha, limpar um sujinho. Ou pega os cigarros que, por sorte, estão longe, e depois os fósforos, mais longe ainda, e depois liga o rádio, lá perto da porta. E desliga.
Cyll Farney, See you later alligator e, entre um e outro, o sabonete Lux, sabonete das estrelas.
Entedia-se.
E, em vez de a empregada ir ver o que ela faz nessas tardes de sol e de silêncio, na sala, é Rose quem quebra o que já ameaça ficar aborrecido:
“Que o café saia logo porque depois quem vai sair sou eu.”
E fecha a porta da cozinha, o riso louco, descontrolado, uma das mãos tampando a boca para diminuir seu som, pois o riso, ele sim, é uma intimidade que não pode ser compartilhada. A sua outra mão está sobre o sexo, agora, a sós, tampando o sexo, não antes, a porta aberta.
No chuveiro, depois, o riso continua, sem que ela consiga parar, o som se irmanando ao borbulhar da água.
Depois este episódio será contado, com gestos e caretas, às gargalhadas, durante o próximo bridge. Riem todos, é um sucesso. São europeus, caramba, e a empregada, uma bugra. Incapaz, portanto, de entender a vida moderna, cheia que está de preconceitos bobos que tanto limitam a vida dessa gente ignorante.
É por necessidade que Rose conta na sala de bridge o episódio da empregada.
É necessário que ela inicie um caminho, que o pavimente com a noção compartilhada por todos eles de que nada de fato tem muita importância. Ou terá. Ela ainda não sabe para reprodução onde o caminho segue. Não nesse primeiro passo. Ainda não sabe e nem se importa. Quer principalmente que haja um caminho a ser seguido, que haja algo em movimento. E precisa, para isso, que todos concordem, uma concordância com sinais vermelhos a serem ultrapassados. Ela não prevê dificuldades. E a impressão, por muitos anos, minha inclusive, é a de que de fato não as teve.
Imigrantes. Todos nós o somos, hoje. Quando a viagem não nos move, é o entorno que nos foge, o que dá no mesmo. Ficamos então parados, com tudo o mais indo, imigrantes a entrar, todos os dias, em nós mesmos.
Elvira Vigna é artista plástica e autora de Nada a dizer e Deixei ele lá e vim. Irá participar em agosto do festival A letra e a voz