Capítulo 1
Ei-la contemplando-se através do branco-pluma da flor de algodão. Por trás da cerca, de todas as cercas e secas de sua vida. Do presente e do passado. Nesse espaço de continuidade aparente, ela transita. Solo e subsolo da alma.
Não se lembra de ter tido companheiros de brinquedo até a idade de quatro anos. Era só. A estrada, fronteira à casa rodeada de alpendres, de onde se avistavam ao longe as duas árvores baraúnas. Os caminhões que aos sábados passavam, levando e trazendo de volta os frequentadores da feira, onde se realizavam todas as transações, ao mesmo tempo sociais e econômicas do lugar. A caatinga com seus facheiros de frutos vermelhos, umbuzeiros, pereiros, umburanas, mulunguzeiros que cobriam o chão de sementes cor de sangue. Os campos de agave. As cercas de arame farpado e avelós. Os açudes, que nas tréguas da seca traziam a visão do mar para aquelas paragens ressequidas. Os grandes lajedos, passeados na seca pelo ardor do sol e no inverno pelo coaxar festivo dos sapos, misturado ao cheiro do mato de muitos aromas. O vasto céu. Tudo isso a circundava, fazendo-a respirar a amplidão de um mundo, hoje sedimentado em sua vida como estratos geológicos. Nunca viu seus pais se amarem.
Não se lembra de ter presenciado cenas expressivas de felicidade entre os dois.
A vida sempre foi, ao menos no que consegue lembrar, o cumprimento de um dever: o de manter, de cuidar, de educar. E tudo isso era feito com muito cuidado e senso de responsabilidade para que não se deixasse faltar o que era julgado essencial.
Sua vida e a de seus irmãos era subnutrida de carinho alegre, de expressões palpáveis de afeto. Assim cresceram áridos e introspectivos. Secos como o sertão e por isso mesmo sedentos do poço adivinhado no íntimo de cada próximo.
De tal secura interior e exterior erguia-se o surdo clamor do seu coração tateando no escuro a voz do outro.
Que rosto iluminado a orienta em direção aos corredores do dia?
Capítulo 2
Contempla na foto a imagem do que chegou a ser como epifania do corpo. Na inocência do que a vida lhe traria dois anos depois, a menina colhe nas mãos a flor do algodão. Brinca com a semente dos fios metafóricos entrelaçados na malha de seu destino.
Alguém, através dos olhos infantis de animalzinho aninhado no aconchego inconsciente do aqui e do agora, vê, nos pés firmes e ágeis, o sobrevir da imobilidade. O lugar que ela pisa é o semiárido, onde a chuva tarda no deserto da espera, inquietando a secura dos habitantes.
O abalo viria pela chuva, tão intensa quanto o desejo de contato com a água, sempre ausente da natureza ávida e martirizada pela eternidade da estiagem.
Passaram-se meses, e vencendo obstáculos de arco-íris e ventos, um dia veio o temporal e batizou a menina, surpreendendo-a no aberto daquele espaço que era o seu. Então cavou buracos na terra molhada, fez lagoas, sandálias de massapê. De pé sob a chuva, ela absorvia o prazer e não sabia ser aquele um dos momentos que sobreviveriam ao esquecimento.
A chuva deixou-lhe nos pés a memória da água em seu abraço com a terra sedenta. Essa memória onde rostos, lugares, coisas, flutuam sem passado nem presente. Olhando os céus de hoje, percebe, não o sombrio, e sim a claridade que parece esconder, sob o ar recém-lavado, um rumor longínquo de trovoadas.
Secreto indício de um fulgor que as precedeu ?
Capítulo 15
Águas de sua infância. O tempo lavado pela chuva. A terra liberando odores secretos: imagens acompanhadas de um prazer aflorável em certos momentos.
No fundo, a infância, os seres atormentados pela aridez do ar. Do mato. Dos homens e mulheres que não desejavam outra coisa senão ressurgir com a alegria cósmica das chuvas que faziam o mundo renascer para a vida.
Inverno. Visitante longamente esperado. Viajante inalcançável em sua imprevisibilidade. Cheio de promessas malogradas. De provocados sonhos de colheitas minguadas no nascedouro. Chuva cheia de rumores e sons distantes e próximos de trovoadas, trespassando de clarões o céu que de repente se cobria de uma penumbra estranhamente aconchegante. A menina vibrava com o cheiro que subia da terra, antecipando na imaginação a chegada do mato verde. De todos os nascimentos possíveis.
Vem da adolescência a imagem dos pimentões verdes e dos tomates vermelhos que ela bordava em ponto-de-cruz no pano de algodãozinho.
Em uma daquelas manhãs beirando a tarde, enquanto ela bordava as hortaliças, a chuva se fez anunciar e invadiu-lhe a memória com seus sons e cheiros agora definitivamente associada ao verde dos pimentões e ao vermelho dos tomates bordados na adolescência.
SOBRE A AUTORA
Publicamos com exclusividade três capítulos do romance inédito de Maria da Paz Ribeiro Dantas, falecida no dia 1º de setembro.