Ficção Hana Luzia fev.22

 

Eis o que Stanislaw Ponte Preta, o Lalau, me contou.

Nem todos ficaram sabendo. Quando em terras americanas, Cristóvão Colombo foi infectado por deletéria e maldita doença. De volta à Espanha, os melhores esculápios da corte dos Reis Magos examinaram-no sem chegar a desempate ao final. Pela descrição das patetices de Colombo entre aborígenes trololós, a junta corregedora concluiu que a causa da doença estava na mordida que um galo cocoricó, de tamanho e petulância avantajados, lhe tinha dado nas nádegas. “Pura vingança de macho” – Colombo explicou aos esculápios; “as galinhas do harém dele eram todas chegadas a um pinto calçudo branco”. 

A evidência da doença não estava na nádega bicada e já cicatrizada, mas no lado oposto. Na pança que ia, dia a dia, inflando que nem balão junino. Não era prisão de ventre nem disenteria. Leite de Magnésia de Phillips não funcionou, nem Alka Seltzer. Muito menos supositório. 

Depois de várias conferências de cópula, os esculápios chegaram a duas maledicências, uma científica e a outra política. Classificaram a doença (até então inédita nos anais da medicina) de Syrraptes paradoxus Columbi. E decidiram frustrar a sanha dos tarados franquistas, enviando o audaz marinheiro para colônia de férias com ginecologistas franceses, grandes especialistas em partouzes infecciosas. Foi no consultório deles que Colombo dançou twist com as mais famosas polacas parisienses, amigas íntimas de Macunaíma. 

Fantasiado de frade, para ocultar a saliência grotesca da barriga, Colombo busca abrigo na igreja de Notre Dame, às margens do Rio Tejo. Descoberto o embuste pelos franciscanos (ele se passava por “mãe de aluguel”), o marinheiro é expulso do batistério. Apedrejado pelas ruas com todos os nomes inimagináveis, Colombo decide procurar alojamento na zona. Por alguns poucos guinéus mensais, instala-se no porão dum cabaré de Pigalle, chamado Pirata do Lago de Léman. Ali, passa os meses finais da sua doença. 

Sem ajuda de qualquer ser humano e na maior miséria, dá à luz a um ovo. 

O ovo de Colombo. 

“Quatro séculos do continente colombiano serão pinto diante deste ovo”, dizia de si para si, orgulhoso, enquanto escondia o principal legado que entregava à humanidade. A partir desse dia, as terras que tinha descoberto passaram a se chamar América, anagrama do nome duma índia faceira chamada Iracema. Preconceito. Puro preconceito de José de Alencar contra homem que bota ovo. Colombo guardou o ovo num baú, a fim de evitar a fome atávica dos ratos e ratões de Paris. 

Passados anos e anos, lá pela década de 1920 deste século, dois conhaques boys brasileiros souberam do ovo. Um suíço naturalizado francês e sem braço foi o informante. Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral eram os nomes dos conhaques boys. Com ou sem o dinheiro do papai Café, tinham que descobrir em Pigalle o tesouro de Colombo. O suíço deu o nome do cabaré. Indicou a rua. Só não tinha detalhes precisos sobre o baú. 

Oswald passou gomalina nos cabelos, vestiu bom bachas e jaleco vermelho, roubou um chicote da família Prado para servir de cinto e, travestido de apache gaúcho, se mandou para Paris. Tarsila buscou saias rendadas nos guardados das escravas baianas, corpetes brancos de renda nos enxovais das iaiás, esticou os negros cabelos pretos e lá estava vestida de gigolete. 

Apresentaram-se os dois como estrelas do cinema mexicano. Arturo & Sarita. O proprietário do cabaré, um tal de Tzara, examinou-os de alto a baixo. Aprovou. Eram bien exotiques. Para sacar se eram gente fina, chamou-os para almoçar no bistrô do Gilles, onde serviam um coelho esperto (no cardápio: Lapin agile). Nem desconfiava que os dois estavam armando o maior golpe do baú da história brasileira. 

Disseram a Tzara: “não temos onde morá”. “Podem morar no porão do cabaré”, respondeu Tzara. O último inquilino tinha sido um palhaço que se apresentava no parque de diversões montado na Praça do Tertre, ali ao lado. O palhaço se chamava Piolim. Plantava bananeiras no palco mambembe. Enquanto as plantava, ia colhendo bananas maduras dos cachos e jogando-as para a plateia, que se regalava. Tudo ia bem até que uma sirigaita resolveu subir ao palco para descascar a banana no pé. Piolim perdeu o equilíbrio e as estribeiras. No camarim, Piolim disse a Oswald que o porão era uma imundície só. Ao entrar, você tem saudades do Brasil. 

Oswald e Tarsila abriram o baú. Batas e mais batas de frade jesuíta. Enrolado numa delas, lá estava intacto o ovo de Colombo. Branquinho e faceiro, que nem botado na véspera. Era preciso chocá-lo, tarefa a que Oswald e Tarsila se dedicaram com amor e ardor durante a siesta do dia e depois da dança apache, de madrugada. 

A casca do ovo de Colombo começou a estalar. Maravilha das maravilhas. De dentro, foi saindo, meio gosmento, um novo Brasil velhinho em folha. 

Saíram primeiro uns casebres de açafrão e ocre. “Rio de Janeiro”, gritou Tarsila, reconhecendo. Rui Barbosa de cartola veio a seguir. Um bloco de Carnaval irrompeu porão adentro tocando bateria. Negras de jóquei requebravam ziriguidum. Tzara pediu a Jean Cocteau para que as contratasse imediatamente. Tarsila manjou as odaliscas que saíram a seguir e lhes pediu que saracoteassem a dança do ventre que nem no Catumbi. O amigo Montaigne comprou logo dois antropófagos, ia comê-los assadinhos. 

Quando o gavião-de-penacho saiu e voou pelo porão, os ratos e ratões correram apavorados. Nisso, esparramou-se pelo chão, completinha da silva, uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas. Um sujeito magro chamado Pratápio da Silva compôs uma valsa para flauta, enquanto a Maricota lia o jornal do peixe. O sabiá cantou Minha terra na laranjeira. Os pajés tinham saudades dos campos de aviação e os militares, da preguiça solar. Sobraçando tudo um espécime que nem um poste da Light, vestido de verde-amarelo. Nele se lia: Pau-brasil. Dependurado como um macaco, Montaigne gritava: Tupy, or not Tupy, e ia passando na cara os antropófagos. “Como tá gostoso o meu brasileiro”, repetia.

Conta-se que o ovário de Colombo era pródigo. Botou mais três ovos. Um na Alemanha, outro na África e um terceiro na União Soviética. Durante a década de 1930, virou mania entre os brasileiros descobrir e chocar ovo de Colombo no estrangeiro.

A notícia correu mundo e saíram, por vias travessas, três novos exploradores. 

O primeiro explorador parecia um botânico saído direto do Museu Goeldi, vestido de soldado inglês na Índia. “Chega de saudades”, gostava de cantar, imitando a voz de João Gilberto, herdada depois pelo filho. Só queria saber de raízes, analisar raízes, raízes pra dá e vendê pros neófitos. Tanto as imaginava enterradas que achou que o ovo estava escondido na Floresta Negra. Não estava. Estava num cabaré de Berlim. Depois de muito procurá-lo, encontrou-o nas mãos de Marlene (ele era chegado a uma corista). Chocou-o com culturalismo germânico e aristocratismo. O ovo era choco. De dentro, brotou um quase nada extraordinário 5 que até hoje, segundo Marlyse Meyer, encanta os olhos dos franceses embasbacados diante de tanta friandise.

Melhor destino teve o ovo botado na África. Juraram ao explorador que de lá sairiam uns mulatinhos e umas mulatinhas de arrasar o quarteirão. Um Brasil negro de cores degradês. “Nada mais chique, nem mais híbrido, o senhor verá”, dizia o vendedor. Não saiu nada de dentro do ovo, mas saiu tinindo da cabeça do explorador um povo anordestinado. Tinha o gingado da Isadora Duncan. Tinha as faceirices de make up do Al Johnson. Tinha a gravata do Caetano e o safári do Gil. Tinha o beijo da mulher-aranha, tascado em primeiro plano pela Sônia Braga. Choco por choco, o ovo acabou encantando as quituteiras do Assaré que fizeram um rol de receitas de doces que, como a preguiça, é um dos males do coração brasileiro.

O ovo soviético foi um desastre para o país. O explorador trouxe o ovo escondidinho debaixo do braço e, mal pisou terras brasucas, o ovo choco estourou que nem bomba atômica. Fedia mais do que os podres poderes da terra. A partir daí, o ovo serviu de galvanômetro para saber a quantas andava o mau cheiro das finanças pátrias. Acusado de subversivo pelas elites, o explorador janota (só podia ser outro paulista) foi levado do cais à prisão, acusado de espalhar gases nauseabundos e indecorosos pela indefesa e recatada classe média, só para aumentar o consumo de lenços de cambraia.

Da experiência brasileira com os ovos de Colombo, veio o dito popular: mais valem três ovos chocos na mão, do que um pinto no ar.

Pela cópia.