Diz o Poema sujo de Ferreira Gullar: É impossível dizer / em quantas velocidades diferentes / se move uma cidade. O poema acolhe, a partir da memória do sujeito poético, a dificuldade que representa uma urbe: trata-se de uma geografia não apenas física, mas afetiva e imaginária, dotada de alta voltagem simbólica. A cidade não é, obviamente, uma novidade na literatura. E esta pode nos levar a explorar de outras formas os mesmos itinerários.
Neste [o que ler de], a jornalista e pesquisadora Priscilla Campos indica leituras que nos levam a repensar os territórios brasileiro e hispano-americano, espécie de roteiro de entrada para adentrarmos as relações entre literatura e cidade. Priscilla ministra um curso sobre o tema no Recife (PE), de 17 a 26 de setembro (mais informações aqui).
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Para pensar o território brasileiro:
As meninas – Lygia Fagundes Teles (1973): Nessa obra, o recorte principal do espaço é um pensionato de freiras no centro da cidade de São Paulo. Em meio à ditadura militar, as personagens convivem em ambientes extremamente interiorizados – o quarto de Lorena, por exemplo, é bastante citado – e são confrontadas por questões de classe, sexualidade e política. A partir de uma delimitação espacial restrita, a escritora descreve um tipo de cidade que se encontra em estado de horror e que os leitores não enxergam. O que é mostrado, no espaço de As meninas, é da ordem do confronto entre o privado (a princípio, uma contingência do tempo histórico-cultural do livro, os corpos que precisam ser contidos em algum tipo de enclausuramento) e o público (algo que permanece ali, mas não pode vir à tona).
Malagueta, Perus e Bacanaço – João Antônio (1963): O primeiro livro publicado por João Antônio é formado por um conjunto de contos que procuram organizar os espaços da margem no centro da narrativa. O autor, conhecido por ter dado voz aos marginalizados e oprimidos pela sociedade dos anos 1960, modifica a impressão que foi deixada pela metrópole modernista das décadas anteriores. As suas narrativas demonstram um espaço com características do realismo e personagens que estão preocupados em manter-se naquele espaço e, de alguma maneira, conquistá-lo. As descrições intercalam os elementos da paisagem literal com as sensações dos personagens, transformando a São Paulo do consumo e da consolidação do avanço industrial em uma cidade mais comunitária no que é próprio do termo assinalado por filósofo Roberto Esposito: as formas de poder que não são exteriores à vida, mas intrínsecas a ela, dentro de uma determinada comunidade.
O cão sem plumas – João Cabral de Melo Neto (1950): O escritor pernambucano buscou, em O cão sem plumas, reorganizar o imaginário em torno do Rio Capibaribe, importante elemento espacial da cidade do Recife. Por meio desse espaço das águas, Cabral de Melo Neto pensou a relação entre sujeito, natureza e animalidade. Ele escreve: Aquele rio/ está na memória/ como um cão vivo/ dentro de uma sala. Em seus versos, estão as possíveis transformações do sujeito diante do ambiente determinado. O Capibaribe parece um espaço do absoluto, onde tanto delírio quanto realidade, o “espesso do real”, estão presentes. Assim, Cabral de Melo Neto mostra um Recife que se origina na água não pelos motivos geográficos óbvios, mas sim pela chance de encontrar nesse espaço o entendimento da formação de um sujeito.
Para pensar o território hispano-americano:
Vida Breve – Juan Carlos Onetti (1950): Nome anterior ao Boom latino-americano, o escritor uruguaio produziu uma obra na qual as questões espaciais foram de extrema importância. Por meio da cidade fictícia de Santa Maria, Onetti monta uma espacialidade fantasmagórica e, ao mesmo tempo, da ordem do desejo, movimento cambiante próprio da literatura hispano-americana. A cidade de Santa Maria foi almejada pelo personagem Juan María Brausen, um escritor que gostaria de fugir de seu cotidiano, em Buenos Aires, para escrever. Santa Maria obedece à ideia do geógrafo Yi-Fu Tuan, que definiu espaço como algo que se dá em liberdade e desejo; e o lugar seria parte de nossa memória, onde encontramos familiaridades. Em seus livros, Onetti joga com os dois termos definidos por Tuan, intercalando os deslocamentos entre Santa Maria, Montevidéu e Buenos Aires.
Historia de una mujer que caminó por la vida con zapatos de diseñador – Margo Glantz (2005): O espaço na obra de Glantz, uma das grandes pensadoras vivas da América Latina, aparece como marca do corpo, relação direta entre o ato de caminhar e a existência que se faz por meio do pensamento. A protagonista Nora Garcia possui um corpo destroçado que se torna linguagem e, ato contínuo, faz das palavras o seu mecanismo de movimentação. A Cidade do México (sua terra natal) e Londres são os principais espaços figurados no texto. Como afirma Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano, “o ato de caminhar está para o sistema urbano assim como a enunciação está para a língua”; dessa maneira, o teórico relaciona o caminhante como sujeito narrativo, ideia que Glantz compactua em suas obras. Entre a erudição e o vivido, a escritora mexicana fragmenta o espaço de grandes cidades e os coloca a serviço de seu corpo, de sua linguagem.
> Priscilla Campos é jornalista e mestra em Teoria Literária (UFPE)