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Desde o ano passado, que marcou quatro décadas de Poema sujo, a Companhia das Letras está relançando a obra de Ferreira Gullar. Todos os livros vêm com prefácios que situam o leitor sobre a importância de cada título. As capas e o projeto gráfico são de Elaine Ramos, que marcou seu nome no design editorial do país à frente da extinta Cosac Naify.

Por conta desse relançamento, fizemos um [o que ler de] Ferreira Gullar. A seleção e os comentários são do nosso editor-assistente Igor Gomes.  

 

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A proposta desse “O que ler de” é ser um roteiro para entrar na obra de Ferreira Gullar (1930 - 2016) em sua forma já consolidada (“maturidade”) e, depois, passar a pontos-chave que simbolizam seu processo de desenvolvimento formal. Optou-se por deixar de fora seus escritos teóricos, que exigiriam uma contextualização mais aprofundada, que não cabe neste espaço. 

 

Muitas vozes: Livro de 1999, foi o penúltimo de poemas inéditos de Gullar. Marcado pelos temas do luto e da memória (como evoca o título). Em geral, Gullar procura observar a poesia no cotidiano - coisas banais nas quais ele encontra algo de si e do mundo. Mas os temas da morte, tratados de forma tão pungente, envolvem quem o lê – afinal, todos lidamos direta ou indiretamente com a experiência da perda. É uma porta de entrada possível por mostrar a força do olhar do poeta.

Na vertigem do dia: Lançado em 1980, é o primeiro livro do pós-exílio. Lê-lo após Muitas vozes é uma forma de consolidar a leitura do, digamos, “Gullar maduro”, que abrange a maior parte de sua produção, com sua poética já formada. Aqui, a poesia surge entre o gesto revolucionário e o lirismo pessoal. Poemas famosos dele, como “Traduzir-se” e “Morte de Clarice Lispector” surgem nesta obra.

Poema sujo: É tido como obra maior do poeta, e não de graça. Lançado em 1976, é um extenso poema que sintetiza todas as etapas formais pelas quais Gullar passou no desenvolvimento de sua poética e, produzido em condições emocionais bastante insalubres – o exílio na Argentina e o desenvolvimento da esquizofrenia em seu filho mais velho –, traz consigo uma visceralidade tocante. Um corpo de 1,70m, que é a medida do poeta no mundo, confunde-se com a memória da cidade de São Luís, onde nasceu. São as ruínas da memória que Gullar visita quando chega a uma situação limite. Nesse trato, ele parte de si para tocar uma dimensão humana universal.

A luta corporal: Primeiro livro de Gullar já sob influência da poesia moderna. Veio a lume em 1954, no meio da década em que o Brasil decidiu conscientemente dar um salto desenvolvimentista – é nessa época que surgem com força João Cabral de Melo Neto e Brasília, dois fortes símbolos de uma arte racional. Posteriormente, Gullar seria um dos artífices do movimento neoconcreto, cuja disposição mental pode se filiar a esse movimento formal de tom racional que caracterizaria os anos 1950. A luta corporal não mostra a poética de Gullar já consolidada; é retrato de uma passagem estética que vai do conservador ao moderno. Ainda em São Luís (antes de se mudar para o Rio de Janeiro), o poeta toma contato apenas com a poesia brasileira do século XIX. Ao conhecer trabalhos de Rilke e Drummond, ele passa a entender a potência das coisas banais e a necessidade de procurar a poesia ali, na vida dos dias. A obra principia com poemas de forma mais tradicional e, gradativamente, emergem poemas em verso livre até chegar àquilo que ele, não sem vaidade, chamaria de “destruição da linguagem”, nos poemas “Roçzeiral” e “Negror n'origens”. Ambos são ininteligíveis (numa leitura da obra pela obra, sem contexto externo). Aqui surgem boa parte das imagens a que Gullar recorreria no resto de sua obra (frutas podres, a vertigem e clarões, por exemplo).