Ontem (29) faleceu João Gilberto Noll, escritor gaúcho recluso de obra amplamente reconhecida. Revelador de solidões: nos colocou, em suas ficções, diante da existência desesperada de personagens desconectados de seu passado e que não sabem lidar nem mesmo com a superficialidade das experiências cotidianas. Além disso, era um sujeito de sensibilidade histórica - "Noll percebeu que o Brasil não conseguiria superar as principais estruturas autoritárias ainda antes que a ditadura acabasse", pontuou Ricardo Lísias em artigo recente.
Por isso, pedimos ao escritor Carlos Henrique Schroeder para montar um pequeno roteiro de entrada na obra de Noll. Leitor confesso de Noll, Schroeder é autor de, entre outras obras, Ensaio do vazio, As certezas e as palavras e História da chuva.
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Desde os anos 1980, João Gilberto Noll mudara nosso modo de perceber a literatura brasileira. A lista abaixo é sobretudo afetiva, e leva em consideração leitores que por ventura não conheçam a obra de Noll, e queiram se embrenhar nessa massa de linguagem e corpo.
O CEGO E A DANÇARINA (1980) - É o melhor caminho para ingressar na obra do autor gaúcho: não por ser seu primeiro livro, mas por todos os vinte e cinco contos já possuírem a semente do deslocamento do sujeito e de seu trabalho de linguagem. Este não é apenas um grande livro, mas também a consciência de um país que grita. Alguma coisa urgentemente, Marilyn no inferno e A maçã no claro são clássicos das formas breves que merecem revisitações anuais.
Trecho do conto Alguma coisa urgentemente
“— Quando você aprender a ler vai possuir de alguma forma todas as coisas, inclusive você mesmo.
No final de 1969 meu pai foi preso no interior do Paraná. (Dizem que passava armas a um grupo não sei de que espécie.) Tinha na época uma casa de caça e pesca em Ponta Grossa e já não me levava a passear. No dia em que ele foi preso, eu fui arrastado para fora da loja por uma vizinha de pele muito clara, que me disse que eu ficaria uns dias na casa dela, que o meu pai iria viajar. Não acreditei em nada mas me fiz de crédulo como convinha a uma criança. Pois o que aconteceria se eu lhe dissesse que tudo aquilo era mentira? Como lidar com uma criança que sabe?
Puseram-me num colégio interno no interior de São Paulo. O padre-diretor me olhou e afirmou que lá eu seria feliz.
— Eu não gosto daqui.
— Você vai se acostumar e até gostar.
Os colegas me ensinaram a jogar futebol, a me masturbar e a roubar a comida dos padres. Eu ficava de pau duro e mostrava aos colegas. Mostrava as maçãs e os doces do roubo. Contava do meu pai. Um deles me odiava. O meu pai foi assassinado, me dizia ele com ódio nos olhos. O meu pai era bandido, ele contava espumando o coração.”
BANDOLEIROS (1985) - O romance inicia com a morte de João, grande amigo do protagonista anônimo (um romancista que goza do sucesso da crítica e do desprestígio do público), dentro do carro, no meio de um engarrafamento. É um livro de experiências urbanas, sem direções cronológicas: o narrador percorre (pelos ritos da memória) as cidades de Rio de Janeiro, Porto Alegre e Boston, juntando estilhaços de seu relacionamento fraturado com sua ex-esposa Ada, suas amigas Alicia e Mary, seu amigo João, o americano Steve e sua esposa Jill. Um livro sobre honestidade intelectual, confiança e morte.
Trecho:
“Então me acudiu a ideia de gritar. Gritar a minha experiência nesse mesmo parque de Boston, e Steve teria de me ouvir porque eu gritaria feito um possesso, e Steve teria de me ouvir porque minha história no parque era mais do que ele poderia imaginar.
Avanço em direção a Steve e berro que agora sou eu. Steve permanece ainda alguns momentos em sua conversa mole, mas quando começo a contar minha experiência no parque ele parece que se espanta mortalmente, e se cala, sim, se cala.
É isso, Steve, minha história no parque começa assim: me vejo de repente pisando um corpo de mulher. Isso acontece numa aléia que leva ao lado oeste da cidade... Pisando um corpo de mulher inscrita a giz... Me inquieta o fato de estar em cima de um corpo, mesmo de giz. Olho e leio ao pé do corpo: aqui foi estuprada e assassinada Peg Hawthorne.”
HARMADA (1993) - Um ex-ator vaga sem rumo por um país inominado da América Latina, com destino à capital, Harmada. Ele, que acreditara estar num estágio de "além- liberdade”, faz de um asilo de mendigos seu novo espaço, e com uma última esperança: montar um espetáculo de teatro. José Castello é muito preciso na orelha do livro: “A importância de Harmada ultrapassa a obra de Noll. O livro desenha um horizonte no qual a literatura brasileira pode, ela também, se reconectar com a realidade”.
Trecho:
“Soube da chegada de Cris logo nos primeiros dias, por ser um albergado que conquistara mais poder de circulação pelos ambientes da diretoria e mais acesso aos assuntos do gabinete, certamente por ter eu, ali, o fator que produzia os relatos: a palavra.
Um dia me pediram que eu procurasse ouvir a sós o que Cris teria a contar – eu, um homem que sabia como fazer para que, como diziam, se dessem amostras das intimidades...
E foi o que aconteceu. Era a primeira vez que eu e Cris nos encontrávamos nas frondosas sombras do pátio, eu me abanando com uma folha de figueira, Cris com seu costume de puxar para cima os longos cabelos morenos para arejar a nuca, os ombros.
Num canto bem isolado do pátio.
- O que há, Cris? – Perguntei ao vê-la morder o lábio superior, francamente obsedada por algum mal.
Cris, espantosamente direta, sem preâmbulos, um único rodeio:
- Faz dois anos que minha mãe desapareceu, simplesmente isto, desapareceu. Dizem que ela pode ter morrido no último terremoto que houve lá pras bandas do norte. Não sei, o que sei é que tudo caminhava bem e, de repente, ela sumiu.”
MÍNIMOS MÚLTIPLOS COMUNS (2003) - São mais de 300 instantes ficcionais, pequenos textos publicados na Folha entre 1998 e 2001, e nenhum deles ultrapassa o limite de 130 palavras. Importante para perceber os desdobramentos dessas narrativas no imaginário do autor: estão ali as principais obsessões dele, travestidas por um impressionismo realista. É um exercício magnífico reler seus romances após a leitura dessas suas pinturas minimalistas.
Trecho de Sangue do Guaíba
Aquele sangue nas mãos que eu devia lavar ali, no Guaíba. Se não, desconfiariam. Do quê, nem eu mesmo sabia. Lembro que, pouco antes, num lance gratuito, imaginara que tivesse ficado em casa estaria em melhor situação. Foi só então que vi as mãos cobertas de sangue. Olhei o rio, tentando escapar da circunstância. Apesar do estado das águas, entrei até os joelhos. E agora só me restava assobiar. A melodia imprecisa, o dia ameno, parecendo ileso. Pouco a pouco o assobio amortecia tudo. A noite logo mais me acolheria. Para que sonhar?
LORDE (2004) - Um escritor de meia-idade é convidado a passar uma temporada em Londres, com as despesas pagas. Desnorteado, vaga pelas ruas da capital inglesa e se debate diante de seus desejos sexuais. Na tentativa de se desdobrar, de buscar um outro em si mesmo, pinta o cabelo, usa maquiagem, faz do espelho uma porta. Mais uma vez Noll investiga a sexualidade e desconstrução de um personagem, nesse clássico dos anos 2000 que conseguiu "captar a realidade através do que a linguagem me indica".
“As luzes do quarto estavam acesas. Ele se deitou, disse que bebera demais. Eu deitei por cima, de frente. Éramos duas caras tão próximas que já não podíamos reconhecer. Era massa de carne em excesso que ajudávamos a aumentar tirando nossas roupas sem sair daquela posição – eu em cima dele, de frente. Estávamos nus, de repente. De forma que, de repente, não tínhamos mais nada a dizer. Então ele se ajeitou por baixo de mim, pegou no meu pau e no dele os uniu. Assim começou a masturbá-los, primeiro lentamente. Eu levantava os quadris para olhar. E envolvi, com a minha mão, a dele, que tocava a bronha nos dois. Éramos dois homens que, embora sem a idade tenra, pareciam dois galos de rinha no máximo da força e que, em vez de se bicarem até a morte, entravam num rito com efusão de outro sangue, este leitoso, que vinha agora em golfadas sujando nossas mão, barriga, pélvis, pernas...”