Carnaval chegando e reunimos algumas ficções - poemas, trechos de contos e crônicas - sobre o período momesco. Literatura que explora a festa e a melancolia que envolve esse período tão estranho, de catarse coletiva em meio à folia que, por vezes, deixa entrever sombras íntimas, lembranças, digressões pessoais. Uma forma de passear pelo clima do Carnaval em suas várias nuances.
A seleção é do nosso editor, Schneider Carpeggiani.
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Carlos Drummond de Andrade
O homem e seu carnaval
Deus me abandonou
no meio da orgia
entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca
sem dimensões.
As fitas, as cores, os barulhos
passam por mim de raspão.
Pobre poesia.
O pandeiro bate
é dentro do peito
mas ninguém percebe.
Estou lívido, gago.
Eternas namoradas
riem para mim
demonstrando os corpos,
os dentes.
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las.
Deus me abandonou
no meio do rio.
Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éter
curvas curvas curvas
bandeiras de préstitos
pneus silenciosos
grandes abraços largos espaços
eternamente.
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Carlinhos Oliveira
O carnaval por dentro (trecho)
Bem, o carnaval é estar zonzo no meio da multidão embriagada. E sendo judeu (sou judeu por nostalgia), atacar de folião no Clube Sírio e Libanês. Beber uísque brasileiro legítimo. Proteger as partes pudendas das nossas acompanhantes, sempre visadas pela turma do Eu Sozinho. (…)
Carnaval é acordar com os cigarros amassados dentro do maço. É querer tirar um colar de dentes de onça e não conseguir. É estar com uma camiseta de regata e não saber onde anda a nossa camisa. É ter que mandar a crônica imaginando que o pessoal do JB vai dizer: ‘Nossa! O Carlinhos desta vez bebeu demais!’
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Rubem Braga
Despedida
E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perca da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.
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Nelson Rodrigues
(Trecho de conto sem título, presente no livro A menina sem estrela)
Começou o Carnaval e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, espectrais. As pessoas usavam a mesma cara, o mesmo feitio de nariz, o mesmo chapéu, a mesma bengala (naquele tempo, ainda se lavava a honra a bengaladas). Mas algo mudara. Sim, toda a nossa íntima estrutura fora tocada, alterada e, eu diria mesmo, substituída.
Éramos outros seres e que nem bem conheciam as próprias potencialidades. Cabe então a pergunta: — e por quê? Eu diria que era a morte, sim, a morte que desfigurava a cidade e a tornava irreconhecível. A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas.
Estou aqui reunindo as minhas lembranças. Aquele Carnaval foi também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados. Ora, um defunto que não teve o seu bom terno, a sua boa camisa, a sua boa gravata — é mais cruel e mais ressentido do que um nero ultrajado. E o Zé de S. Januário está me dizendo que enterrou sujeitos em ceroulas, e outros nus como santos. A morte vingou-se, repito, no Carnaval.
Eu poderia fazer, aqui, todo um capítulo sobre o pudor. O comportamento do homem e da mulher até princípios de 1919 era medieval, feudal ou que outro nome tenha. Psicologicamente, ainda não ocorrera para nós a abertura dos portos. A mulher que ia ao ginecologista sentia-se, ela própria, uma adúltera.
E tudo explodiu no sábado de Carnaval. Vejam bem: — até sexta-feira, isto aqui era o Rio de Machado de Assis; e, na manhã seguinte, virou o Rio de Benjamin Costallat ou, ainda, do Theo Filho. — Caímos muito de categoria”, dirão vocês. Respondo que até um verso de jornal de modinha, ou uma manchete de O Dia, tem a sua dimensão sociológica. Desde as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos da espanhola — e tão humilhados e tão ofendidos — que cavalgavam os telhados, os muros, as famílias.
Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos cantavam uma modinha tremenda. Eis alguns versos: — “Na minha casa não racha lenha./ Na minha racha, na minha racha./ Na minha casa não falta água. / Na minha abunda.” etc. etc. As pessoas se esganiçavam nos quatro dias; e iam assim de
paroxismo em paroxismo.
Nos carnavais seguintes, a cidade teve medo dos próprios abismos; houve um certo recuo. Mas o Rio de Machado de Assis, ou de Macedo, ou sei lá, estava morto. O que quero dizer, ainda, sobre o Carnaval da espanhola é que foi de um erotismo absurdo. Daí a sua horrenda tristeza. Disse não sei quem que o desejo é triste. E nunca se desejou tanto como naqueles quatro dias. A tristeza escorria, a tristeza pingava, a alegria era hedionda.
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Angélica Freitas
February mon amour
janeiro não disse a que veio
mas fevereiro bateu na porta
e prometeu altas coisas
'como o carnaval', ele disse.
(fevereiro é baixinho,
tem 1,60 m e usa costeletas
faria melhor propaganda
do festival de glastonbury.)
pisquei ligeira nas almofadas:
'nem tô, fevereiro
abandonei o calendário'.
'você é um saco', ele disse
e foi cheirar no banheiro
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Xico Sá
Amor de Carnaval (trecho)
O carnaval é uma lição de desencanamento. Vale por mil manuais de auto-ajuda, vale por todas as lições otimistas de Pollyana, moça. Que tal aplicar a técnica momesca no nosso dia a dia, depois das cinzas, quando voltarmos a São Paulo? Seria perfeito.
Para que tanto desgosto inventado? Tratemos o próximo como um folião permanente, o(a) namorado(a) como um(a) passante/ficante, levemos menos a sério a vida. Evoé Baco, evoé Momo!
Com licença que vou ali gastar o resto do corpinho no Recife Antigo. Quem sabe dou sorte e encontro o amor da vida, digo, o amor da quinzena, o amor da semana, o amor de hoje à noite, o amor eterno enquanto dura o show do Cidadão Instigado no Rec Beat, o amor possível que mereça esse nome. Afinal de contas, assim como a fama para Andy Warhol, no carnaval amamos e somos amados pelo menos por 15 minutos.
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Carol Almeida
Carnaval não se namora, se ama (trecho)
Carnaval não se degusta, se bebe mesmo. Do mesmo jeito que ele não se namora. Carnaval se ama. Até o último gole, até a última ponta.
A impaciência me consome. As fotos dos amigos que lá estão me corroem. E claro que eles fazem questão de documentar tudo, as fantasias, a maquiagem borrada, as prévias e os durantes (mas certamente nunca os depois). Entrar nas redes sociais se torna um exercício masoquista. Indócil, termino esquecendo de dar bom dia. As ruas fazem barulhos de ruas, nem de longe se escuta um frevo, um maracatu, um bloquinho lírico, um apito que seja. As ruas daqui são inocentes. Elas não sabem de nada.
Entre uma tarefa e outra nesse ar condicionado, subordinado e subjugado, te imagino. E de todas as formas que te dou, só uma é constante: teu sorriso. Aberto, lindo, mais que demais. Um sorriso Caetano, cantando calado aquele frevo axé.
Mas deixe estar. Ano que vem não perco, mentalizo novamente. E você, que já não será mais você, vai esbarrar comigo pela primeira vez. E terá olhos cor de caju maduro, embebido de vodca e açúcar. Vamos cair pelos cantos, colar a pele, fazer juras apaixonadas tendo o sol como testemunha e a lua como cúmplice. E claro, em algum momento, nos perderemos. E acharemos outros. Você, vocês.
É que se, de perto, o Carnaval é a exaltação da vida atravessada pela fantasia, de longe ele é sempre a possibilidade de fantasiar. Com você, meu amor, seja lá quem for.
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Machado de Assis
Um dia de entrudo (trecho)
Era no tempo em que ao carnaval se chamava entrudo, o tempo em que em vez das máscaras brilhavam os limões de cheiro, as caçarolas dágua, os banhos, e várias graças que foram substituídas por outras, não sei se melhores se piores.
Dois dias antes de chegar o entrudo já a família de D. Angélica Sanches estava entregue aos profundos trabalhos de fabricar limões de cheiro. Era de ver como as moças, as mucamas, os rapazes e os moleques, sentados à volta de uma grande mesa compunham as laranjas e limões que deviam no domingo próximo molhar o paciente transeunte ou confiado amigo da casa.
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Luís Henrique Pellanda
Fantasia curitibana (trecho)
Chego bem a tempo, a chuva já virou temporal, me safei. Na portaria, dou boa-noite ao porteiro. Ele assiste a um desfile na tevê portátil, o samba-enredo fala de amor e liberdade. O prédio está frio, e a noite de carnaval promete ser comprida. Chamo o elevador, ele demora a surgir. A porta se abre e, lá dentro, vejo uma menina de oito ou nove anos e o assoalho coberto de confetes. Ela está de pijaminha rosa, batom preto, chinelos de dedo. Carrega uma foice de plástico da minha altura. Penso que é hora de criança estar na cama, onde é que já se viu, quem é você, cadê teus pais? Pergunto a ela: O que é que você tá fazendo aqui? E ela, uma graça, sorrindo: Eu tava só te esperando.
Entro no elevador, a menina nos fundos da cabine. Aperto o doze e a porta se fecha. Ouvimos um estouro na rua, eu tomo outro susto, decerto é um raio, digo a ela, e dos perigosos. Uma explosão maior e, de repente, cai a luz do prédio, o cantor emudece na tevê, a bateria se desintegra e já era a liberdade, o amor ninguém viu, deixamos o samba morrer, como é que pode, não levamos jeito pra alegria, perdão, domingo de carnaval em Curitiba é sempre assim. É o escuro desta caixa fechada, a mudez dentro dela, esta menina que não quer dormir, os comprimidos sem receita, o guarda-chuva pingando no chão, a água dissolvendo o confete, a lama de papelão sob nossos sapatos, e a presença invisível — invisível, mas gelada — de uma foice.
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Clarice Lispector
Restos de Carnaval (trecho)
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto, essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
Trecho de uma crônica publicada no Jornal Correio Popular em 1993
Pequenas sugestões e receitas de espanto antitédio para senhores e donas de casa durante o Carnaval.
I
Pegue um nabo. Coloque duas ou três palavras dentro dele, por exemplo: bastão, ouro, amplidão. Chacoalhe. Você não vai ouvir ruído algum. É normal. Aí ajoelhe-se com o nabo na mão e diga:
Com o bastão que me foi dado
Com o ouro que me foi tirado
E sem nenhuma amplidão
De conceitos e dados
Quero renascer brasileiro
E poeta.
Quem te ouvir vai ficar besta.
II
Colha um pé de couve e dois repolhos. Embrulhe-os. Faça as malas e atravesse a fronteira. Tá na hora.
III
Pergunte ao seu filhinho se ele quer laranja descascada de tampinha ou de gomo. Se ele disser que quer laranja descascada de tampinha, diga que um menino bem educado sempre escolhe a de gomo. Se ele começar a chorar, chupe você a laranja. De tampinha, naturalmente.
IV
Enfeite a mesa com flores. Compre um peru. Feche as crianças no banheiro. Antes de começar a ceia, convide seu marido para dançar ao redor da mesa (não mexa com o peru). Inopinadamente pergunte se ele gosta de trufas. Se ele disser que sim, gargalhe algum tempo atrás da porta e diga que “trufas não tem não, amorzinho”.
V
Compre manteiga. Passe-a nos dedos (esqueça Marlon Brando). Chupe-os. E diga em tom de oração: que vida solitária, meu Deus! (Contenha-se.)