empurra empurra tinta

 

Vozes de imigrantes, de transeuntes ocasionais, de locais perdidos, declarações de amor, de perdição e até de susto. Foi um pouco o que buscamos mostrar nessa pequena reunião de textos sobre a cidade que muitas vezes se coloca como alegoria do país, seja pela diversidade de povos, seja pelas encruzilhadas que enfrenta.

De um Miró da Muribeca olhando os grafites vestindo os viadutos a Márcia Denser narrando uma noitada pela urbe daquelas que você mal lembra mas nunca esquece, essa é a nossa forma de pensar a cidade no dia dos seus anos.

 

 

Ana Martins Marques

São Paulo


Depois de um tempo
todas as coisas ficam marcadas
como se estivessem
impregnadas de veneno


Há um tempo em que os lugares
são limpos e novos
abertos como clareiras
mas já não é este o tempo


Sobre cada lugar se sobrepõe
a experiência do lugar
como um selo
num cartão-postal


Por exemplo
hoje sempre que sobrevoo
São Paulo
penso que em algum apartamento
desta cidade interminável
você
fumando
de óculos
exerce seu direito
inalienável
de não mais pensar
em mim

(De A arte das armadilhas)

 

 

 

Caio Fernando Abreu


 “Erguendo os olhos para o rosto daquele homem jovem que eu ainda não Sabia que era Pedro, entre os solavancos do trem, do lado oposto da barra amarela que afunda pelo túnel, tomado por aquelas sensações e todas essas outras que tento especificar agora, algumas sem nome, como aquele calafrio crispado e gozoso da montanha-russa, um segundo antes de despencar no abismo, esbarrei num rosto claro que oscilava de um lado para o outro, eu não Sabia se pelo balanço do trem ou se estaria um pouco bêbado. Devia ser sábado, passava da meia-noite. Ele sorriu para mim. E perguntou:
 − Você vai para a Liberdade?
 − Não, eu vou para o Paraíso.
Ele sentou-se ao meu lado. E disse. − Então eu vou com você.”

(Do romance Por onde andará Dulce Veiga?)

 

 

Miró da Muribeca


PARADOXO

São Paulo tem tudo
pra ser uma grande cidade

 

DIZCRIÇÃO

São Paulo
meus olhos alegres inclinados
olhando teus grafites vestindo teus viadutos

 

DIZCRIÇÃO

Comprou tudo que sonhava
e teve um ataque fulminante
na Alameda Santos

 

CARDÁPIO

A solidão entrou no bar 
pediu um pingado com pão na chapa
e foi embora com fome

(Do livro Miró até agora)

 

 

Marcelino Freire

Poeminha para São Paulo

aqui morreu o meu pai
quando eu recebi a notícia
eu já morava na Vila Madalena
e dormi de luzes acesas esperando
o primeiro avião para o Recife
aqui morreu o meu irmão
quando eu recebi a notícia
eu estava em uma universidade
dando uma palestra sobre contos
sem saber como terminar a história
aqui morreu a minha mãe
quando eu recebi a notícia
eu voltava de uma apresentação
uma peça de teatro no centro
meu coração caído sob o viaduto
a cidade em que eu vivo
é a que me mata aos poucos
onde eu peço socorro
o relógio marcando todo dia
a hora da morte dos outros
depois de tudo vem o nascimento
porque são paulo não para
não está nem aí para o abandono
o funeral do esquecimento é aqui
onde mora o próprio tempo


(publicado no site do autor, neste link)

 

 

Oswald de Andrade

Poema da cachoeira

É a mesma estação rente do trem
Toda de pedra furadinha
Meu pai morou alguns anos aqui
Trabalhando
Um dia liquidou
Ativo passivo
Cinco galinhas
E deram-lhe uma passagem de presente
Para que eu nascesse em São Paulo
Como não houvesse estrada de rodagem
Ele foi na de ferro
Comprando frutas pelo caminho 

(Extraído do livro Pau Brasil – Obras completas de Oswald de Andrade)

 


Angélica Freitas

ringues polifônicos

1.

entre ringues polifônicos e línguas multifábulas
entre facas afiadas e o elevado costa e silva
entre dumbo nas alturas e o cuspe na calçada
alça voo a aventura na avenida angélica
e hoje de manhã trabalha e amanhã avacalha
a viação gato preto colando um chiclete
adams de menta no assento daqueles bancos de trás
entre ringues polifônicos e tênis alados
entre paulistas voadores e portadores esvoaçados
de baseados no bolso das calças jeans
entre o canteiro central da paulista e a vista do vão do masp
entre os que eu quero e os que queres de mins


2.

dos ringues polifônicos da cidade de são paulo:
entre valsas e velórios e invertidos convulsivos
entre a puta enaltecida e enrustidos explosivos
entre a abertura da boca e o último trem pra mooca
entre os ringues polifônicos e a queda da marquise
morreu ontem executada a poor elise


(Do livro Rilkeshake)

 

 

Márcia Denser


“Sozinha na rua deserta, amanhecia. Teria muito que andar até chegar a alguma avenida, algum táxi, algum ônibus, alguma parte. Atravessei a rua. Encostada no muro, olhei para o alto do prédio, ainda iluminado em certos andares e, não sei por que, lembrei aquela frase do Ernest Hemingway em As neves de Kilimanjaro a respeito de um tigre que foi encontrado morto, enregelado entre os cumes cobertos pela neve e que ninguém, ninguém jamais soube explicar como e por que ele chegou até lá.”


(Extraído do conto Tigresa, presente em Diana Caçadora)