Em Roma, nas Scuderie del Quirinale, o centenário do nascimento de Italo Calvino será celebrado através de uma exposição que aborda a sua relação com as artes. Favoloso Calvino é o título do evento, um dos mais aguardados que terá início no mês de outubro. Um projeto visual com curadoria de Mario Barenghi e organizado pela Ales S.p.A. / Scuderie del Quirinale em colaboração com a Editora Electa. Essa exposição irá destacar o percurso criativo do escritor relacionando-o com ambientes reais, formas várias do imaginário artístico, teorias e dados biográficos. Será o olhar, a imagem que gira na cabeça1, o pensar as coisas, o instrumento atiçador das chamas do imaginário Calviniano:
“O ponto de partida – explica Mario Barenghi – é uma imagem ‘nascida sabe-se lá como’ que às vezes carrega consigo durante anos; aos poucos uma história começa a se desenrolar a partir da imagem que vai desdobrando significados inesperados e adquirindo sentido. Mais tarde, diversos fatores despertarão a imaginação de Calvino: teorias cosmológicas, os arcanos do tarô, objetos do cotidiano. No entanto, permanece constante o dar início através de um estímulo visual, do qual o lento trabalho da escrita revela o potencial, dando-lhe a forma de uma história”.2
A propósito, a Mondadori publicou recentemente Guardare. Disegno, cinema, fotografia, arte, paesaggio, visioni e collezioni (2023), edição curada por Marco Belpoliti, excelente oportunidade para conhecer melhor e aprofundar a sua relação com as disciplinas visuais. Aquele Calvino que se dizia cansado do cinema parecido com a literatura e da literatura parecida com o cinema, aquele que tinha pouco interesse na televisão, para ele um mero instrumento informativo. O Calvino de L’ultimo canale (O último canal), publicado no La Repubblica (3 de janeiro de 19843) que nos traz as fusões e confusões do real e do imaginário através de um protagonista delirante acusado de querer mudar o mundo com golpes de controle remoto, espécie de viva zapping e não Zapata.
Além disso, a exposição traz ao publico o comprometimento político do autor, o Calvino partigiano, guerrilheiro, o seu engajamento e ruptura em 1957 com o PCI (Partido Comunista Italiano) através de uma carta escrita no l’Unità, como também a sua produção literária relacionada com os lugares onde viveu. Todos esses elementos serão protagonistas de uma fascinante jornada repleta de curiosidades e de exclusivas narrativas expositivas.
Serão reunidas mais de 200 obras que – entre pinturas, esculturas, desenhos, ilustrações de artistas do Renascimento até os nossos dias, manuscritos medievais, tapeçarias – construirão um percurso pela vida, pelas escolhas e sobretudo pelo originalíssimo método literário e de trabalho de Calvino. Encontraremos também a música, as suas colaborações com Luciano Berio e Sergio Liberovici. Tudo nas 10 seções dos dois andares das Scuderie del Quirinale.
Em Roma, na Biblioteca Nazionale Centrale, há uma sala inteiramente dedicada a Italo Calvino. Um lugar que propõe uma sui generis imersão no seu espaço de trabalho. Após deixar Paris em 1980, Calvino e a mulher Chichita, Esther Judith Singer, compram uma casa em Roma em Campo Marzio número 3, o último andar do seicentesco Palazzo Naro. A casa tinha sido indicada pela amiga Natalia Ginzburg. Calvino diz:
“As minhas casas são sempre uma criação da minha mulher. Eu não saberia dar um toque pessoal a uma casa. Minha mulher, ao invés, tem o dom de se exprimir fazendo com que uma casa possa ser sua e só sua, imune a todos os lugares-comuns que rendem uniformes e intercambiáveis as casas em uma data, época e cultura. Apraz-me viver em uma casa agradável, mas sozinho não saberia fazê-la como tal”.4
É justamente em um dos salões da nova casa que Calvino coloca três mesas de trabalho e sobre cada uma delas o material que poderá idealmente desenvolver obras diversas. Como descreve Domenico Scarpa, no estúdio, assim como no resto da casa, encontram-se as máscaras africanas favoritas de Chichita, a sua coleção de jazz e rock, as esculturas de Fausto Melotti que inspiraram As cidades invisíveis, a série das città sottili (cidades delgadas).
De facto, na Biblioteca Nazionale Centrale di Roma, para além do fundo arquivístico e bibliográfico do escritor, encontram-se também diversos móveis, objectos, pinturas, escrivaninhas, as suas máquinas de escrever e, espalhados entre estes, é possível encontrar muitos objetos pessoais, das suas viagens e dos amigos próximos.
Multiplicam-se os eventos em toda a Itália dedicados ao escritor. Na sua amada e odiada Sanremo, foi inaugurado no 1º de março um itinerário literário com 38 painéis ilustrativos que convidam os visitantes a explorar lugares ricos de testemunhos e memórias. Calvino vendeu a casa onde cresceu com a família, Villa Meridiana, desiludido com a especulação imobiliária que minou a paisagem onde foi criado pelos pais Mario Calvino e Eva Mameli, realizadores de um parque de aclimatação de plantas tropicais em Sanremo. Como se sabe, Calvino nasceu em Cuba, em Santiago de las Vegas, uma pequena localidade perto de Havana, porque o seu pai Mario, agrônomo, filho de uma tradicional família de Sanremo, dirigia ali uma estação experimental de agricultura em uma escola agrária. A mãe Eva (Evelina), sarda de Sassari, foi a primeira mulher a obter a livre docência em botânica na Itália em 1915, após a graduação em Ciências Naturais em 1907. Calvino nasce e cresce entre árvores, mas circundado por águas, pelo mar.
Em Grado, onde vivo, uma ilha na província de Gorizia, um arcaico ramo do patriarcado de Aquileia, iniciaram-se sessões de leitura de Italo Calvino organizadas pela Biblioteca Civica Falco Marin. Uma delas é realizada em um barco, La barca delle storie (A barca das histórias) que leva os interessados, não só turistas, até a Barbana, uma ilhota santuário mariano na Laguna di Grado que possui uma comunidade de monges beneditinos, por coincidência em sua maioria brasileiros. A laguna tornou-se muito conhecida através de Pasolini que ali filmou parte da sua Medea com Maria Callas.
Essas são algumas das tantas atividades dedicadas ao centenário do autor, realizadas durante o ano de 2023 por toda a Itália. Celebremos, avanti, evviva Calvino!
NOTAS
1. “All’origine di ogni storia che ho scritto c’è un’immagine che mi gira per la testa, nata chissà come e che mi porto dietro magari per anni. A poco a poco mi viene da sviluppare questa immagine in una storia con un principio e una fine, e nello stesso tempo – ma i due processi sono spesso paralleli e indipendenti – mi convinco che essa racchiude qualche significato. Quando comincio a scrivere però, tutto ciò è nella mia mente ancora in uno stato lacunoso, appena accennato. È solo scrivendo che ogni cosa finisce per andare al suo posto.” / “Na origem de cada história que escrevi há uma imagem que me gira na cabeça, nascida sabe-se lá como e que carrego comigo, se calhar, durante anos. Gradualmente, desenvolvo esta imagem numa história com começo e fim e, ao mesmo tempo –, mas os dois processos são muitas vezes paralelos e independentes – convenço-me de que ela contém algum significado. Quando começo a escrever, porém, tudo isso ainda está em minha mente num estado incompleto, apenas vislumbrado. Só escrevendo é que cada coisa acaba por encontrar o seu lugar.” in I. Calvino, ‘Postfazione ai Nostri antenati (Nota 1960)’, in Id., Romanzi e Racconti, edizione diretta da C. Milanini, a cura di M. Barenghi e B. Falcetto. Prefazione di J. Starobinski, I, Milano, Mondadori, p. 1210
2. Disponível em: www.arte.it
3. In Le cosmicritiche. Calvino al cinema di Aldo Grasso, Corriere della Serra, la lettura 16 luglio 2023 – Anno XIII – N. 29 (#607)