Ilustração por Karina Freitas

 

No bairro de Salvador onde uma vez por ano alugo um apartamento, há um busto em bronze, de costas para o mar, perto do ponto em que, dizem, nasceu o Brasil. Mas não é o busto de nenhum brasileiro. É Stefan Zweig, sereno, de olhos abertos, com o bigode polido pelo afago dos passantes. Zweig é famoso por ali; muita gente tira foto com ele. De manhãzinha, quando passo correndo, tem sempre alguém dormindo ao pé do escritor. O busto fica ao lado de um banheiro público, de frente para dois bares e um grande centro hospitalar. Também divide a calçada com carrocinhas de coco. Então, matando a sede, as pessoas às vezes se escoram em Zweig.

 

Os homenageados têm, em geral, a sorte de uma companhia tão tranquila que se confunde com a indiferença. Duvido que Lima Barreto quisesse ter essa sorte. A lógica da homenagem literária obedece a vários reis. Há a sanção popular, claramente evidente em leitores de ônibus, bancos de praça e fã-clubes; há o juízo da crítica, que se expressa em dissertações, teses e na contagem de artigos; e há o amor carnal dos agentes e editores, cuja prova é a sequência ininterrupta das reedições de um autor. Sob qualquer um desses critérios, alguém ainda duvida que Lima Barreto esteja entre os principais da língua?

 

Bem, Policarpo, eu não quero contrariar você; continue lá com as suas manias. A cara do Brasil tem muitas cores. Seus escritores, muitas manias. A esse respeito, surgiu numa festa literária recente um debate curioso: que o Brasil precisava homenagear um escritor com a cara do Brasil; que tudo era político e o escritor que falasse a verdade, falaria politicamente. Não disputo a crença de que um diagnóstico crítico, a respeito das molas do poder de sua época, faça parte da relevância do escritor Lima Barreto. Tampouco ponho em questão a complexidade que sua escrita deriva de uma trajetória praticamente ignorada pela literatura do período: os riscos de uma vida como autor negro, pobre, enfrentando-se a preconceitos e problemas psiquiátricos, na pugna com o alcoolismo. Não é que essas variáveis outorguem à escrita nenhum mérito automático. É, mais ou menos, o contrário. A urgência de uma escrita que busque o registro de experiências inconformadas é índice da força e da variedade de um autor. A literatura é o campo em que essas experiências devem contar para todos, e não apenas para aqueles que passaram por elas. É precisamente aí que a política e a homenagem podem se dar as mãos.

 

— Sabes o que estou fazendo, Anastácio?

— Não “sinhô”.

— Estou vendo se choveu muito.

— Para que isso, patrão? A gente sabe logo “de olho” quando chove muito ou pouco...

 

Policarpo Quaresma vai medir a chuva que Anastácio considera plenamente constatada a partir de um mero golpe de vista. O momento verdadeiramente político de uma homenagem a qualquer escritor é semelhante ao gesto de Policarpo: levar aquilo que parece opaco, de tão natural, ao reino do visível; tornar a escrita que realiza tal operação nossa bem-vinda vizinha. Como me disse uma professora querida, literatura é leitura e leitores, e os escritores são feitos nessa presença de detalhes revistos a cada geração.

 

A grande visão política do nosso homenageado está em fazer da vida de gente humilde um complexo de tramas desconfiadas; usar o simplório como pedra no sapato dos grandes ideais; lançar mão do ridículo na denúncia do nosso proselitismo; enxergar a majestade do drama em detalhes comuns e, sobretudo, dar ao eu confundido uma dignidade que ele carecia, quando antes era apenas examinado de cima para baixo, sob a ótica das instituições bem-nascidas. Para além do chavão, a homenagem que se fizer a Lima Barreto só lhe fará justiça se ela incluir nossa carência dele: ver-nos na cara do autor é pensar com ele um Brasil que, de certa forma, o negou.

 

Uma homenagem deveria transformar a opacidade do óbvio em algo palpável, que de repente passe a fazer parte da paisagem de todos. Não é óbvio que Lima Barreto é a nossa cara? E, no entanto, por onde anda ele? Aplaudamos o escritor com cuidado; ele sabe mais do Brasil do que o Brasil quis saber dele. A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava existir, havia. A que existia de fato era a do tenente Antonino, a do doutor Campos, a do homem do Itamarati. E até no delírio patriótico, a pátria é inimiga e se denuncia.

 

Hoje, a caminho da aula, cruzei novamente com meu querido Zweig. Quem olhe dali para longe, talvez buscando no outro lado uma ponta da África, dá de cara com o bronze nos olhando de volta, como quem diz que sabia que o Brasil iria ser o país do futuro... Colei por cima da plaqueta com o nome do busto um papelzinho avisando aos passantes: Lima Barreto me representa. No final da vida, tal qual um Policarpo, Zweig teve a mania de entender o Brasil. Por outro lado, o sublime Lima, na sua singela grandeza, lá de trás, já havia entendido o esforço do próprio Stefan Zweig. Ora, me parece que isso vale mais que um busto.