Será possível que só eu o veja ali, na vizinhança do Passeio Público? Pois garanto a vocês: vagueia entre o Círculo Militar e o Teatro Guaíra, ao menos nas manhãs nubladas, um imenso palhaço em pernas de pau. Nunca o viram? Bem, não é todo dia que ele aparece, desconheço a sua agenda. Só sei que ultrapassa os três metros de altura. O traje é sempre o mesmo. Sapato bicolor, grande e sóbrio, calça larga e listrada, em azul e branco. O paletó é amarelo, mas bordado de corações, luas e estrelas. Informal, não usa gravata. Traz uma cartola sobre a peruca de lã amarela e um lenço florido no pescoço.
Que idade tem, não perguntem. Seu rosto é um mistério, e é raro vê-lo variar os traços e cores da sua clássica máscara de guache, até que bem feita. Mas o que é mais notável neste palhaço gigante — e, ao mesmo tempo, o que mais o torna invisível ao mundo — é que ele não faz nada.
É viável isto, um palhaço inútil? Este não vende coisa alguma. Doces, balas, sonhos, nada disso. Não distribui panfletos, não segura cartazes, não monta tocaia em cruzamento, não acampa na esquina. Não faz nada. Nem dinheiro nos pede, decerto possui outras fontes de renda. Não ri, não sorri, não chora, não busca contato visual. Não chama a atenção de ninguém, apenas anda, de lá pra cá, da Santos Andrade ao Largo Bittencourt, seguido somente por uma admirável bunda postiça. Ninguém vê graça nisso, e palhaçada nem é a dele. Como comediante, é certo que não existe. Às vezes, não sei, eu o considero uma espécie de artista da translucidez, martirizado pelo que pensa ser a indiferença da luz. Tem talento e carisma, e só não o aplaudo porque sinto vergonha de aplaudir sozinho.
Mas é claro que estou exagerando. O palhaço me impressionou tanto que tendo a idealizá-lo. Já o flagrei, sim, falando com outras pessoas em seu caminho. Um dia, eu o vi aconselhar alguns jovens malabaristas num sinal da Conselheiro Araújo. Três argentinos sentados no meio-fio acompanhavam sua conversa paternal, de especialista. Havia amor em sua postura, e aquilo me agradou. Só lamentei não ter ouvido mais que uma frase do que ele dizia:
— Vocês têm de fazer disto uma vida.
Disto— não consegui descobrir a que ele se referia. Ao trabalho, à arte, à rua, a alguma eventual tragédia, ou ao sofisticado ato de escutar? Sim, os meninos o ouviam, mas com enfado, não há por que ocultá-lo. E também demonstravam amor por ele, e respeito, e algum medo. Pois o palhaço tem uma voz forte e aguda, característica da categoria, anasalada pela pressão de seu nariz de plástico, um timbre que nos gruda no ouvido e parece se dirigir, sempre, a toda uma multidão.
E quem aqui teria a coragem de afirmar que ela não está mesmo lá, essa multidão a seus pés, milhares e milhares de fantasmas sentados no meio-fio? E quem sabe não sejamos também, cada um de nós, uma visagem transparente na calçada, as orelhas abertas a qualquer aprendizado mágico? E quantas vezes nós mesmos não imitamos o palhaço, e pontificamos para o vento que sai de nossas bocas?
Também o vi, noutra manhã, dando dicas de maquiagem a um daqueles moços. O pequeno malabarista se mirava num espelho de automóvel e seguia à risca as instruções de seu mestre pernalta. Como pintar o olho, como desenhar os beiços, como controlar as sobrancelhas, como esconder a alma amargurada, e os ressentimentos, e os temores, e toda a solidão com que a cidade nos presenteia. Admito que ficou ótimo, uma hora ou outra experimento.
Ao meio-dia e meia, mais ou menos, o palhaço some. É de lei. Vai para casa, não sei, ou para outro canto qualquer do Centro. Acredito que também precise almoçar, que sinta fome como qualquer um de nós. Só que, antes de partir, ele se acomoda um instante entre dois dos quatro tubos do Ligeirinho no Jardim Leonor Twardowski. Madeira sobre acrílico, escora o corpo magro no ponto dos ônibus que batem e voltam do Aeroporto, do Pinheirinho, do Santa Cândida, e ali se abandona a um silêncio contemplativo. Visto aqui de baixo, o cara lembra um poste sem lâmpada.
Não espera a condução. Espera a saída do Colégio Estadual, as meninas que passam em bandos alvoroçados, em seus uniformes brilhantes, as mochilas abarrotadas de futuro e desinteresse, adolescentes em calças azuis e brancas, exatamente como as dele, só que justas, cada vez mais justas. As novas gerações, ele gosta de vê-las passar. Parece querer atacá-las, agredi-las, ofendê-las, mas não: ele as deixa passar, e tudo que guardará delas será uma lembrança de afeto e desejo.
Gosto dele, gosto, é um sujeito fascinante. Outro dia o vi se aproximar, com seu elegante passo de girafa, da árvore que faz sombra aos taxistas da Amintas de Barros. Não sei dizer que planta é aquela. A copa, nem alta nem baixa, é feita de folhas de um verde morto, acinzentado, mas vive carregada de flores miúdas e rosadas, tão atraentes quanto agressivas.
Gente de perna curta, vocês podem imaginar, não tem acesso a elas. Mas o palhaço tem. Assim, ele foi até lá e começou a colhê-las, como se fossem pitangas, uvas, jabuticabas, araçás. Um espetáculo lindo de se ver, o artista enchendo de flores a sua cartola vermelha. Curioso, sentei no Café do Estudante e pedi uma água mineral, queria descobrir o que aquele homem surpreendente faria com sua colheita.
No radinho do lugar, tocava uma guarânia bonita, não sei quem a cantava, era uma voz de criança, triste e afinadíssima. Fiquei feliz por ter parado ali, a música me fez bem. Uma loura falsa, de óculos escuros, tomava uma cerveja na mesa ao meu lado, e seus lábios se mexiam conforme os versos da canção — uma pena que a letra, agora, me escape.
Aquilo me distraiu do palhaço das pernas de pau por alguns segundos e, quando tornei a olhar para a árvore, ele já estava indo embora. Não vi o fim que deu àquelas flores, mas de repente tive a impressão, quase a certeza, de que as escondera debaixo da cartola. Enterrou-as ali e subiu a Amintas com a cabeça pesada, perfumosa. Os cabelos de lã cobertos de pétalas, pólen e insetos.
Que a escuridão os fertilize.