Quando o romeiro enfiou seu punhal num sacerdote do Crato, sentia-se ultrajado por certas palavras que o religioso pronunciara durante o sermão, na missa de domingo. Preso e conduzido à cadeia, ele repetia um mesmo solilóquio: “Matei o padre porque zombou dos mistérios”. Em Juazeiro do Norte, uma vila cearense pertencente ao Crato, acontecera o milagre da hóstia se transformar em sangue nos lábios de uma jovem beata, durante a comunhão. O acontecimento cercou-se de fé e crença populares, nenhum homem poderia questionar sua veracidade, muito menos debochar em público.
O devoto do Padre Cícero Romão Batista carecia dos mistérios em sua vida, de algo que se mantivesse inviolado, puro como um cálice no sacrário. Viera de longe em busca do lugar santo, a terra prometida de Juazeiro do Norte. Os romeiros iguais a ele também haviam perdido o diálogo com o sagrado, consumidos no duro silêncio da sobrevivência. Sem mistérios, a vida se tornara um deserto. Mas ali no Juazeiro, o precioso sangue recolhido em paninhos e guardado numa urna de madeira restituía a crença que se perdera há muito tempo, o vínculo com o passado mítico.
As florestas do Araripe cercam as cidades caririenses. O vale já foi um oceano no período cretáceo, milhões de peixes, insetos e vegetais fossilizados preservam a memória dessa época. A tradição garante que na igreja matriz de Nossa Senhora da Penha, onde aconteceu o crime, um jacaré e uma serpente dormem sob os pés da Virgem, no altar principal. Se os dois acordarem, o mar adormecido poderá ressurgir das profundezas e cobrar seus antigos domínios, afogando as pessoas nas águas. Todas essas coisas estranhas nunca aconteceram, mas sempre existiram, por isso é necessário crer nelas. Na ausência do mistério resta um silêncio infecundo.
Também dizem que os colonizadores brancos chegaram à região com rifles e espadas, e que os índios taparam os olhos das nascentes com chumaços de algodão, antes de morrerem ou fugirem. A água se recolheu às entranhas da serra, e bem pouca continuou jorrando até os dias de hoje. Contam muitas histórias em que se acreditou no passado, porém não se acredita mais. Sem crença no presente, os velhos calaram e o silêncio tornou-se uma cerca para a sabedoria. A serra envolta em neblina perdeu seus segredos. Os labirintos escuros onde as pessoas se perdiam, abriram-se em estradas. Motos percorrem os caminhos de caititus e onças, espantam enigmas com o barulho dos escapes.
A chapada, a floresta, os rios e os fósseis tramavam silêncio com as pedras. Porém tudo se tornou devassável, nada mais se guarda inacessível, o sacrário abriu suas portas a qualquer profano. Os violadores também sobem a serra e penetram o negrume da mata. Mãos profanas tocam os caules das árvores. O lenço que uma delicada princesa sustinha entre os dedos esperando o herói que o arrebatasse — no cimo de uma escadaria de cem degraus —, tornou-se bagatela de um e noventa e nove. Qualquer um pode vencer os obstáculos e arrebatar o lenço.
Criadas em meio à floresta e águas, as pessoas abjuraram sua natureza, extraíram dela o conforto, a beleza e a saciedade, sem pagar nada em troca, nem as moedas que se deixa na mesinha de uma prostituta. Desnudaram a mulher, se esfregaram entre suas coxas, não se incomodaram em sujá-la por dentro e por fora. Com uma lanterna na mão, investigaram as linhas do seu corpo, destrinchando os acasos. Já não existiam curvas perigosas, nem sustos, nem medos, apenas terras brocadas à espera do fogo.
O homem que assassinou o padre fugira de uma terra seca, onde quase nunca chovia, e o sustento era impossível. Caminhou mais de trinta dias a pé, sozinho, sem nenhuma companhia além da própria sombra. Fez o percurso acreditando no extraordinário de que os outros falavam. Quando anoitecia e deitava sob a proteção das estrelas, apareciam nos sonhos confusos imagens da floresta, água entre as pedras e sangue na boca de uma virgem. Na capela pequena e cheia de romeiros, olhou as vestes pretas e cinzas da moça beata, a língua expectante estirada para fora, a tintura vermelha insinuando-se entre os lábios. Viu essas coisas e sentiu haver chegado num lugar de comunhão.
A ponto de acreditar no sobrenatural, sua vida ganhava um impulso para dentro. A esposa, os pais, os filhos, os parentes e amigos, todos massacrados pela fome, renasciam no milagre. O mistério penetrou sua alma e ele descobriu-se um novo homem. Aprendeu a fabricar candeeiros com flandres, o bastante para a sobrevivência. Porém seu verdadeiro alimento era o sagrado.
Foi quando soube das heresias de um padre, no Crato. Ninguém pediu que ele fosse. Com as economias comprou o punhal. Sozinho chegou à cidade rica e pedante. Assistiu à missa em pé, junto à porta de saída. Escutou o sermão apócrifo e aguardou a hora certa.