Ilustração por Karina Freitas

 

“Como seguir alguémque não se mexe?” — Roberto Bolaño em Estrela distante.

 

Blanes é um balneário próximo a Barcelona com uma pedra dos suicidas a recepcionar os turistas, uma feirinha de artesanato, inúmeros restaurantes servindo paella de arroz negro e uma livraria quase sem livros. Um cenário tão desolador em sua banalidade que pode causar uma síndrome de serendipidade, palavra de longa extensão a designar acasos. Você sai em busca de uma coisa e encontra outra. Serendipidade é o estado de espírito que certos viajantes confundem por crise. Explico: crises são os momentos em que não entendemos o inusitado das coisas… Se era para estar num lugar, como fui parar em outro? As crises se encerram quando compreendemos onde chegamos. Crises equivalem a serendipidades não digeridas.

 

Em junho passado, parti com uma amiga fotógrafa para Blanes com a missão de fazer a “rota Roberto Bolaño” para uma revista. Foi lá que o escritor chileno viveu seus últimos anos e escreveu a parcela mais importante da sua obra, até morrer de insuficiência hepática em 2003. Havia pesquisado na internet a experiência de alguns viajantes que tiveram a mesma ideia (li que uma jovem autora chegou a se hospedar no apartamento em que ele morou, numa tentativa de possessão disfarçada de residência artística), anotado endereços, traçado metas e nada. A matéria nunca foi concluída. Houve, sim, um esboço de texto, escrito às pressas num balcão de padaria, que acabou sendo extraviado, ou eu mesmo quis que fosse extraviado, uns dois meses depois. Escrever sobre Blanes parecia tão sem sentido que o melhor talvez fosse escrever uma tentativa de escrita, o ensaio como obra final (talvez apenas para mim mesmo, ainda que todo texto seja, no fundo, endereçado a terceiros). E pronto.

 

Todas as anotações que fiz durante o percurso, e também todas as entrevistas com moradores que pareciam se vangloriar de serem monossilábicos, acabaram se perdendo deliberadamente. Fui ao restaurante onde Bolaño pedia uma infusão e uma omelete todas as manhãs, sentei à mesa em que possivelmente havia sido o cenário da sequência final de Estrela distante, romance em que o escritor pela primeira vez se reconheceu como detetive selvagem. Fui à livraria onde ele esperava o filho sair do colégio, na verdade uma papelaria com dois ou três livros de Isabel Allende (a inimiga!) e cartões postais amarelados, comandada por uma mulher (bastante) interessada na nossa descrição do carnaval brasileiro. Experimentei o ponto certo do café que ele tanto gostava, num restaurante mais à frente. Não, nada parecia valer um texto.

 

Minha amiga não parava de reclamar da falta de coisas fotografáveis ao redor, até que ela teve uma ideia: tirar fotos das ruas da cidade e apagar todos os transeuntes. Um insightbacana, mas a troco? Tudo ali já era tão sem sentido, tão vazio, que o truque provocaria apenas uma triste ênfase. “Por que esse homem veio para cá?”, ela me perguntava, e junto eu me perguntava o mesmo. Foi quando nos perdemos no centro labiríntico de Blanes em busca do apartamento onde o Bolaño escreveu Estrela distante, no último prédio de um beco sem saída.

 

O acesso principal para a calledo escritor estava bloqueado por uma reforma da prefeitura. Tivemos de fazer um malabarismo para ter acesso ao local, com direito à inscrição “Viva Franco” no caminho. Cheguei a tocar na campainha do tal apartamento. Ninguém atendeu. A dona de uma loja, que ficava em frente ao prédio, nos alertou que aquela era uma rua de alojamentos de veraneio. Possivelmente não havia morador algum ali, já que a alta estação mal havia começado. Perguntei se ela se recordava de Bolaño. “Era um homem simpático, mas estranho… Um artista”, foram as únicas coisas que guardei na memória das inúmeras entrevistas frustradas que fiz. É compreensível: como esquecer algo tão esquecível como essas palavras?

 

Nossa última parada em Blanes foi uma visita à biblioteca pública, onde havia uma placa em homenagem ao escritor, resquício solitário da sua vida na cidade. Estava fechada. Retornamos a Barcelona com fotos falsas de ruas vazias e com uma matéria que não fazia sentido. Pensei seriamente em escrever sobre a falta de Roberto Bolaño na “rota Roberto Bolaño”, mas só reclamar era tão fácil, tão mais do mesmo, que deixei para lá. E mais: queria escrever sobre uma falta, mas Bolaño não problematiza faltas, e sim ausências. E talvez não exista falta na ausência.

 

Fiquei esses meses todos com um texto inexistente entupido na garganta. É aí que entra a tal da serendipidade. Ontem à noite resolvi fechar minha Gestalt bolaniana. Eu não precisava escrever sobre a “Rota Bolaño”, ou citar aqui o nome da calle onde ele morou, nem descrever os lugares em que ele trafegou como um homem simpático, porém “artista”, para compreendê-lo melhor ou fazer o leitor compreendê-lo melhor. Sim, Bolaño estava todo em Blanes, eu é que não entendia: ele é o beco sem saída; o apartamento vazio; a pedra dos suicidas; nosso desdém diante dos restaurantes em série; a livraria sem livros; a mulher que sonha em se exilar (sim, o verbo é necessário) nos trópicos, ainda que viva num balneário; a biblioteca fechada; as fotos falsas da minha amiga… Escritores não descrevem paisagens, mas as deformidades dessas paisagens, eles olham através da gente, funcionam como relógios que não dependem da exatidão das horas e preferem adiantar o tempo. Adiantar nossa percepção das coisas. A ausência de Bolaño valeu por um encontro.

 

Talvez literatura não seja mesmo assunto de rotas turísticas. Turistas já sabem aonde vão.