Ilustração de Janio Santos

 

Verão de 1974. Morre Dona Maria da Soledade Alonso — minha avó materna, figura essencial que me educou e formou. Com 22 anos, vivendo ainda a dor da recente perda, leio Olhos de cão azul, de Gabriel García Márquez, por recomendação de meu amigo e professor de Literatura, Mario Barreto. O livro, uma coletânea de onze contos, tem a morte como tema central. Por estranho que pareça, as histórias e suas personagens me distraem e me confortam. Mais ainda: me ensinam e, no meu pouco tempo de estrada, me abrem novos horizontes. Nessas páginas, escritas no final dos anos 1940 e início dos anos 1950, já encontramos a originalidade e a liberdade criativa do renomado escritor colombiano. Diferentes visões da morte me são por ele sugeridas: por um lado, existências sem sentido e sem vida. E, por outro, contraditoriamente, finais que, embora tristes, realizam e trazem plenitude. É assim que, na juventude, nessas horas de luto e recolhimento, sou apresentado a Gabriel García Márquez que — mesmo sem me conhecer — vem e, pela força de sua palavra, me faz companhia. Palavra que me estimula a recriar a realidade e a aceitar a vida plenamente, com todos os seus fardos, mistérios e atribulações, com toda a sua magia e luminosidade. Lembro-me de que, no conto que dá título ao livro, uma das personagens teme que alguém sonhe com seu quarto e mexa nas suas coisas! Que imagem fantástica! Passo dias refletindo sobre a inusitada possibilidade, que me diverte e comove e assusta e inspira. Sou apanhado de surpresa: em vez da religião é a literatura que me permite o voo de mãos dadas com minha avó “revivida”. Voo que, até hoje, me dá acesso a sonhos despertos.

 

Esse fácil trânsito de García Márquez por universos incomuns me fascina — tanto quanto Franz Kafka o impressionou na adolescência com sua A metamorfose, quando Gregor Samsa acorda, certa manhã, de um sonho agitado e vê que se transformou num inseto monstruoso. Como simples leitor, penso que, em Márquez como em Kafka, essa falta de medida da realidade seja uma forma de retratar o desespero do ser humano diante de sua finitude e, portanto, diante do aparente absurdo de sua existência. O “desmedido” de Márquez, por estar impregnado de poesia, me seduz ainda mais. A poesia — presente não só em seus escritos, mas também em sua vida. A poesia — “essa energia secreta da vida cotidiana que cozinha seus grãos e contagia o amor e repete as imagens nos espelhos.” Em seu livro mais recente, Eu não vim fazer um discurso, ele nos confessa: “Em cada linha que escrevo trato sempre, com maior ou menor fortuna, de invocar os espíritos esquivos da poesia, e trato de deixar em cada palavra o testemunho de minha devoção pelas suas virtudes de adivinhação e pela sua permanente vitória sobre os surdos poderes da morte.” É a poesia que o leva a acreditar que a imaginação é apenas um instrumento de elaboração da realidade, embora a fonte de criação seja a própria realidade. É a poesia que o faz chorar copiosamente a morte do Coronel Aureliano Buendia, de Cem anos de solidão, porque (justifica-se com sua mulher Mercedes) não havia mais jeito — tinha que matá-lo. É a poesia que o leva a ter flores amarelas, de preferência rosas amarelas, em sua mesa de trabalho.

 

Minha relação de leitor com García Márquez é também relação de amigo. Não que eu tenha tido o prazer de conhecê-lo pessoalmente. A amizade provém da leitura de Cheiro de goiaba, das inúmeras afinidades descobertas nessas conversas do autor, já prêmio Nobel de Literatura, com Plinio Mendoza. Nelas, Gabriel nos fala da infância que, por circunstâncias especiais, passou sob os cuidados da avó materna, único menino em meio a inúmeras mulheres. Fala também da autoridade dessa avó que governava uma imensa casa e lhe contava histórias de antepassados mortos e os fatos mais atrozes sem se comover. Por diversas vezes, me dá a impressão de estar narrando passagens de minha infância, meus medos e anseios de adolescente. Sua vida e sua visão de mundo passam a me cativar tanto quanto a obra. A ponto de eu querer homenageá-lo em meu segundo romance, criando uma personagem que, por pura imaginação, conversa com ele. Doce Gabito, publicado em março deste ano, foi a maneira que encontrei de, afetuosamente, me aproximar de Gabriel García Márquez e, pelo menos em plano inventado, me tornar seu amigo.