
Durante váriosanos, na minha infância, passei o natal na casa de minha Oma e do meu Opa (descendentes de alemães e holandeses usam os hipocorísticos afetivos “opa” para vovô e “oma” para vovó) em Braço do Trombudo, uma pequena cidade de Santa Catarina. A casa, bem grande, acolhia praticamente todo o clã Schroeder, e durante alguns dias se tornava um reino encantado (para nós, crianças, já para os adultos talvez o nome adequado fosse Faixa de Gaza). A árvore de natal era sempre frondosa, muito bem ornada, mas o mais interessante estava ao seu lado, ao menos para mim: a grande estante de livros, feita de madeira maciça, que abrigava coleções completas de grandes escritores mundiais. Uma das coleções que mais me fascinava era a dos ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura: de capa dura, e com a lombada impressa em letras douradas. E numa noite dessas de natal, o jovem Schroeder, com seus dez ou onze anos de idade, após filar e beber escondido uma taça de champanhe, abriu a porta de vidro da estante, e pegou um exemplar da coleção do Nobel. Era o livro do vencedor de 1969, do irlandês Samuel Beckett. Dei uma rápida folheada e vi que a obra apresentava os pormenores da atribuição do prêmio, uma breve biografia e dois textos, o romance Malone morree a peça Dias felizes. Lembro ainda, no pantanoso terreno da memória, que achei engraçado o sentido antagônico dos dois títulos: morre e felizes.
— Opa, este livro é legal?
Ele apenas sorriu, fitando o livro, tomou mais um gole em sua taça e retomou a conversa com meu tio. Nunca entendi porque não respondeu, se é que escutou minha pergunta, afinal, a noite de natal é sempre esquisita, carregada de euforia num primeiro momento, e de melancolia no segundo. O fato é que devolvi o livro à estante e voltei a me enturmar com meus primos. Alguns dias depois, peguei o livro novamente na estante, mas para servir de apoio para uma caderneta, onde rascunhei a caneta meu primeiro texto literário (se é que aquilo poderia ser chamado de literário, pois com onze anos se tem muito cabelo e poucas ideias), um conto sobre um soldado na guerra do Vietnã. Minha Oma (Uta Holetz Schroeder, poliglota, descendente de holandeses e alemães, fã de Flaubert, faleceu na década de 1990), heroica, leu e teceu elogios que não entendi, mas foi a generosidade (coisa rara no campo literário) e o incentivo dela que me fizeram querer ser um escritor (ela sempre foi uma ouvinte atenta, e fingia que acreditava nas mentiras que eu sempre inventava). E meu Opa, Heinz Schroeder, achava divertido o fato de eu sempre carregar dois lápis e falar sozinho, e um dia soltou: “E estes seus monólogos, hein jovem Beckett, vão te levar para onde?”. Naquele dia planejei o roubo do livro do Beckett, que não deu certo (a história toda renderia uma dezena de crônicas), e com o fim das férias tive que me despedir da estante sagrada. Mas eis que o destino me reencontrou com Beckett na adolescência, pois quando meu Opa resolveu repartir seus livros, o Beckett ficou com minha tia Eunice (até hoje, minha leitora mais fiel), que me repassou imediatamente. E foi lendo Malone morre (e depois os outros dois da trilogia Molloy) que minha adolescência foi por água abaixo, e ao invés de andar atrás das saias, como meus amigos faziam, ficava trancado no quarto lendo coisas tristes e tocando punhetas intermináveis. Mas eu era feliz, e como. Morria com o Malone, criava com o Malone, que também estava confinado num quarto (mas ele descrevia seu intento de fazer da ficção a companhia ideal durante a agonia de seu “parto para a morte”). Malone distraia-se ao inventar personagens e histórias sobre os quais não exercia domínio, assim como eu (no meu caso, por inexperiência). “Onde agora? Quando agora? Quem agora?” Aquele foi meu primeiro contato com uma narrativa convulsionada, que tinha “a expressão de que não há nada a expressar, nada com que se expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliada à obrigação de expressar”.
Tudo isso ainda ecoa em minha memória, como uma música ao longe. Sai de Braço do Trombudo há muitos anos, morei em muitos lugares. Becket afirmou que não há como fugir das horas e dos dias, nem de amanhã e nem de ontem. Minha Oma foi levada pelo câncer, numa batalha cruel e injusta, meu Opa se digladia diariamente com dois cânceres, e em breve passará a existir apenas na memória daqueles que o conheceram. Restarão imagens, como estas que descrevi acima, restará Beckett, e Uta e Heinz, enquanto existir memória.Meu encontro com o passado chegou, e como já prescreveu Marcel Proust, “certas recordações são como amigas comuns, sabem fazer reconciliações.”