Pedem ao escritorque converse com o mundo. Pedem, por obséquio, que por umas poucas horas ele desvie os olhos de suas páginas inacabadas, que neste dia não se encerre entre os livros de seu escritório, que possa atravessar o corredor de sua casa e sair a passos largos, que tome um táxi para não se perder pelas ruas tão caóticas. Querem que tenha vestido seu melhor terno ou o que equivalha a um terno nestes tempos de deselegância programada. Pedem, por favor, por aqui, que se sente no centro do palco de um grande auditório, relevando as escassas poltronas ocupadas, guardando para si seu comentário bem-humorado, o escritor como celebridade tão precária. Querem que limpe a garganta e enfim fale, improvisando ou fingindo improviso mas mantendo a eloquência que lhe é tão própria, sobre tudo o que pensa, o que vive, o que sente, o que lhe ocorre.
Por que escreve, o mundo não lhe pergunta, mas sim uma senhora abnegada na segunda fila que sempre se presta a seguir o protocolo. O escritor tem à sua disposição a infinidade de respostas já dadas por escritores em circunstâncias similares, ou ao menos as que ele pode acessar na infinidade de sua memória, e não há problema, não se preocupe, verdadeira ou falsa qualquer resposta é válida. Convém que remeta ao dia longínquo da infância em que descobriu seu fascínio pelas palavras, sua relação tão íntima com a linguagem. Mas o escritor quer dizer: escrevo porque não falo, ou porque falo mal, não sei conversar. O que digo, digo errado, nunca acerto direto uma frase. Meu pensamento é lento, minhas primeiras ideias são sempre as piores. Talvez não pareça, mas o escritor sofre de uma gagueira da alma, e escreve para disfarçá-la.
Preferia estar em silêncio? Agora a pergunta soa como se fosse feita pelo mundo, mas vem na voz de um jovem sentado bem mais ao fundo no auditório, provavelmente escritor, certamente desconfiado, sem saber se deve continuar assistindo ou se ganha mais voltando para casa. O escritor que ocupa o palco tem agora que apelar a alguma autoridade maior, a alguém que tenha merecido o adjetivo laudatório anteposto à identificação de praxe: uma grande escritora. Disse uma vez, aquela grande escritora ucrano-brasileira, que a pequena projeção de que ela era vítima feria seu pudor; que, depois de perder o anonimato, o que ela queria dizer elanão podia mais. Disse que preferia ficar calada. Que tinha um grande silêncio dentro de si, e que esse silêncio, mais precioso que tudo, era a fonte de suas palavras.
Essas frases, ou algumas semelhantes, o escritor recupera de um caderno que leva sempre a tiracolo, caderno íntimo onde dispõe suas acanhadas anotações, caderno que devia servir somente para ele, para alimentar sua escrita, mas que ele tem começado a usurpar nessas ocasiões. Querendo agora cobrir o silêncio que se cria no anfiteatro desprovido de qualquer atração melhor, ocorre-lhe contar a história de mais um grande escritor, um argentino que em sua juventude jurara com toda firmeza em seu caderno íntimo: “Não permitirei que ninguém penetre nos meus cadernos, como fizeram com Kafka e Pavese. Não morrerei. Escolherei com o tempo qual é a palavra justa e necessária que devo dizer, e o resto atirarei ao fogo.” Por uma dessas inesperadas desventuras da vida, esse escritor morreu. Há de ter lhe faltado uma lareira, pois essa e outras anotações foram publicadas alguns anos depois entre seus Papeles de trabajo, um vultoso volume com seus inéditos até então.
Ninguém dirá, mais tarde, que a breve apresentação do escritor foi um fracasso, tampouco um sucesso. De volta à sua casa, ainda trajando seus melhores sapatos, protegido entre as paredes forradas de livros de seu escritório, o escritor se deixa envolver pelo silêncio e observa pela janela o mundo em movimento, o vento agitando as folhas das árvores, os carros que passam, a cidade refletindo-se em seus vidros fechados. Conversar com o mundo? Tanto melhor se o mundo conversasse comigo, se falasse por mim, ele sussurra quase sem mexer os lábios, e prefere não anotar a ideia precipitada.