Peabiru não tinha, pelo menos geograficamente, mar. E esta paisagem era algo que não fazia parte de nossa experiência. Só os minimamente ricos podiam viajar para as praias. Fomos então criados no completo desconhecimento dessa palavra, que recebia uma tradução mais imediata em nosso imaginário interiorano. Quando alguém falava em mar, eu pensava logo nos rios, nos rios de água barrenta onde tomávamos banho em tardes quentes.
Cresci apartado do mar. Só depois de ter me tornado adulto pude apresentá-lo à minha pele, mas ela já estava grossa demais para se deixar amolecer por essa outra água. Por isso, o mar e o adulto que sou mantêm uma distância respeitosa. Olho-o de longe, pois sei que minha alma não é marinha.
Mas não, embora verdadeira, esta afirmação talvez não esteja correta. Há, sim, uma grande experiência litorânea em minha infância, que só mais recentemente venho valorizando.
A poucas quadras de onde cresci, havia uma casa de madeira que parecia deslocada. Não por ser de madeira, a maioria das casas era deste material naquela época. Mas por exibir alguns adornos marinhos.
A cidade poeirenta, onde a água das chuvas produzia um barro que grudava nas solas dos sapatos, aumentando em centímetros a nossa altura, guardava um desejo de ser mar. Um escultor de origem austríaca, José Moser, tinha erguido um pequeno monumento pessoal à sereia, esse monstro que simboliza a sedução. No canto 12 da Odisseia, de Homero, Ulisses se prende ao mastro para ouvir as sereias e não se deixar levar. “Venha para perto, Ulisses”, elas cantavam. Em minha perdida Peabiru, a própria sereia era o mastro, e vivia aprisionada, sustentando parte do telhado da casa. É que o escultor dotara a varanda da frente de sua casa de uma balaustrada com peixes e de coluna em forma de sereia.
Até ter passado em frente desta casa, eu só conhecia esculturas religiosas. A própria família Moser era especialista em obras sacras. Mas foi este motivo pagão que ajudou a me encaminhar para a arte, desviando-me do destino de trabalhador rural. Aquela sereia presa cantava: “Vá para longe, menino”.
A casa da sereia, tal como ela ficou conhecida, foi o primeiro ambiente artístico que vi e produziu em mim um desejo de distância. Ela dava para uma rodovia muito movimentada e isso era estratégico. O artista deve ter esculpido aquelas figuras com o propósito de divulgar o seu trabalho aos viajantes, que seriam compradores em potencial, já que a cidade de Peabiru não devia ser um bom mercado para ele. Passando ali, fui aprendendo a partir.
Mas aquela galeria de beira de estrada não serviu apenas para me apresentar à arte. A sereia, sobre a qual eu tinha pouca informação, me revelou também a anatomia feminina. Foi dela o primeiro par de seios que vi, e que cobicei.
Passávamos por lá com olhos fixos na sua beleza úbere, sonhando não propriamente com o mar, mas com as mulheres. Elas um dia seriam nossas. Eu ainda não sabia que uma sereia era inadequada para os fins que lhe dávamos. Muitos anos depois, quando eu já havia mapeado o corpo feminino, em contato com o romance O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho, li a declaração do narrador ingênuo, papudo e libidinoso: “Da sereia aproveitei as partes de cima, que as partes subalternas não servem para nada”. Bem, posso dizer que não aproveitei nem as partes de cima da minha sereia de mamilos escuros e intumescidos. Mas ela continuou emitindo, a distância, o seu canto silencioso.
A casa de José Moser foi vendida e sofreu reformas. As peças de madeira sumiram. Não sei dizer quando. Só bem depois eu me dei conta de que não havia mais sereia nem peixes naquela casa. Não perguntei a ninguém o paradeiro daquele ser mitológico. Um conhecido comentou que a família Moser continua fazendo esculturas sacras, mas agora em Treze Tílias, no interior de Santa Catarina. Venho planejando, vagamente, uma visita a esta cidade.
O fato é que, aos poucos, aquela sereia foi se tornando o centro da minha infância. Só quando desaparece é que algo tido como desimportante passa a existir. A existir como memória, essa coisa tão frágil mas muito mais duradoura do que quase tudo que encontramos no mundo material.
Como quem guarda lembranças de uma paixão antiga, comecei a querer ter algum registro da minha sereia. Mexendo na internet, encontrei uma foto de Luiz Cesar Hladu (1961-2010), que a flagrou bem de perto, de baixo para cima, tal como aquele menino que fui a olhava. Esta imagem me devolveu inteiro àquele mar improvável.
Sim, passei a infância ao lado do mar. Em verdade, somos muito íntimos. Desde aqueles alumbramentos provocados pela visão dos seios da sereia, uma brisa marinha assopra sobre mim.