Quando mostrei o leitor de e-book da Amazon, o Kindle, para um amigo, ele disse: “Uau, quer dizer que esse é o futuro?”. Olhou ao redor — estávamos no quarto dele — e comentou: “Não alugo mais filmes, só baixo. Não compro mais CDs. Se eu deixar de comprar livros, daqui a pouco não tem mais nada no meu quarto. Só uma tela. Uma tela que faz tudo e nada mais”.


Mas ainda temos livros em papel. Eu, amigos mais velhos, amigos mais jovens. Livros em papel aos montes, organizados em estantes, de forma alfabética ou aleatória. Até mesmo os maiores entusiastas dos e-books não abrem mão de ter graphic novels em edições físicas (afinal, os quadrinhos exigem um tamanho específico). E se tornou uma espécie de consenso entre editores e escritores que o livro em papel não vai sumir. Não pelos próximos cinquenta anos, ao menos. Ainda que as próximas gerações sejam criadas já com os e-books, sempre haverá os que preferem sentir o peso da edição e o cheiro característico do papel, nem que seja pelo fator vintage (o mesmo critério que leva os discos em vinil a serem vendidos até hoje).


Todavia, ao passar por duas mudanças recentemente, todas as minhas crenças acerca do armazenamento de livros impressos foram abaladas.


A primeira mudança
Quando saí da casa dos meus pais para morar sozinho em um simpático apartamento de um dormitório no Jardim Botânico, em Porto Alegre, notei que precisava me desfazer de muitos livros. Mesmo comprando uma estante sob medida que ocupasse uma parede inteira, tinha coisa demais. Separei uns cem livros que não gostava muito, ou que recebi sem pedir de editoras e não me interessavam, e vendi ao sebo. Já que não os lerei ou relerei, o ideal é que atinjam outros leitores.


Na verdade, essa me parece que deveria ser a atitude padrão. Após a leitura de um livro, passá-lo adiante para outros leitores. Não é como se fôssemos reler aquele livro diversas vezes (há exceções, claro: poesia e contos são mais fáceis de reler, e gosto de pensar que um dia terei tempo para enfrentar de novo as páginas de Ulisses, que nunca pode ser apreciado com apenas uma leitura). Por outro lado, gosto de manter os livros ao meu alcance, até mesmo para poder emprestá-los (gosto de “empurrar” um livro a amigos que visitam a minha casa, usando o argumento “eu tenho certeza que você vai gostar”). Mas a pergunta permanece, e me atormenta enquanto bibliófilo: precisamos mesmo guardar tantos livros? Por que não vendê-los e buscar versões digitais deles?


A segunda mudança
Esse questionamento reapareceu quando, há pouco, me mudei de Porto Alegre para São Paulo. Como o preço dos imóveis na capital paulista é muito maior, precisei dividir o apartamento com uma amiga, uma amiga que também possui sua biblioteca. Quando um casal se une, as bibliotecas se fundem. Mas o que fazer quando dois amigos dividem o precioso espaço da sala? Além do mais, a última coisa que quero é impor o meu gosto literário na decoração da sala (pois livros físicos também são peças decorativas).


Para piorar, minha estante não pôde ser transportada, então meus livros se encontram espalhados pelo piso, correndo risco de serem atingidos por cálices de vinhos cheios. E, observando o caos de volumes e volumes pesados empilhados no chão, me pergunto: preciso mesmo de tantos livros? Faz sentido armazená-los?


Aos poucos, comecei a guardar alguns livros menos queridos debaixo do colchão (no “box baú”, como chamam), além de revistas que não caberiam em uma estante, formando uma espécie de biblioteca secreta. Mas, o que deve entrar nesta biblioteca oculta? Fui até a sala e procurei livros. A tarefa começou de forma fácil: Nove noites, do Bernardo Carvalho, continuaria na sala, mas O filho da mãe, que considero inferior, ia pra baixo do colchão. Ficções? Sala. Siete noches? Cama. Logo surgiram dilemas. “Será que algum dia vou reler Gramatologia?”, pensei. “Espero que não. Porém, foi um livro importante na minha formação...” Em dúvida, se Derrida merecia um espaço na futura estante da sala ou a solidão do box baú, concluí que, por mais horrível que seja admitir, o armazenamento de livros está profundamente ligado à vaidade intelectual. É perigoso generalizar e estender a outras pessoas um pecado pessoal, mas acredito que sim, boa parte dos bibliófilos quer exibir: “eu li esses livros”. Nem que seja para si mesmo.


Por mais que haja um sentimento sincero quanto à biblioteca cultivada, por mais que a pessoa goste de folhear os volumes, cheirar as páginas, reler trechos, a parte da vaidade parece inescapável. Além disso, quem já foi solteiro, sabe a boa impressão que causa uma estante repleta de livros.


Armazenar volumes impressos em uma cidade onde o metro quadrado do imóvel está a preço de ouro beira o ilógico e, como argumentei, pode ser uma atividade um tanto fútil. Para mim, nada muda. Continuarei acariciando lombadas. Hora de pesquisar preços de estantes.