Adiei tanto começar um diário do meu álbum Avante que ele nunca foi feito...
Dito isso, algum ponto de partida?
Eu, que repetidamente apontei a poesia como ponto de partida e linha de chegada, matéria-prima e força motriz de meu processo criativo, sinto grandes dificuldades em me referir às letras de Avante sem levar em consideração a música que lhe serve de veículo, além da relação entre o som, o texto e os motivos pessoais que de alguma forma motivaram e justificam a conexão das partes em um.
Está tudo tão ligado: os fatos da vida íntima e profissional me levaram aos questionamentos e me forçaram à busca de respostas, que me foram dadas em muitos momentos mais pela música do que pelas palavras e seu jogo. Foi a desconstrução da autoimagem que me forcei a executar ao preço de um longo bloqueio criativo que só se desfez lentamente em palavras quando a música já parecia me mostrar minimamente que caminho seguir... O caminho da construção de cada “canção” acumula relações múltiplas, embora eu admita ao mesmo tempo não ter tanta clareza sobre o processo que me possibilite oferecer um mergulho mais cristalino nisso tudo.
Nas letras, Avante é como um disco de cantador de viola, cirandeiro, mestre de maracatu de baque solto, onde tudo o que é cantado está sujeito a um conjunto de regras que determinam de que forma se tecem os versos, de que modo são abordados rima, métrica e sentido ( que os cantadores chamam de “oração”).Esse conjunto de regras caracteriza uma estética poética particular, extremamente desenvolvida no Nordeste brasileiro, à qual me sinto filiado a ponto de me considerar não apenas um “compositor”, como se definiria um autor de música popular, mas também um “poeta”, como qualquer artista que se exercite num dos estilos de poesia oral citados no começo desse parágrafo. Em Avante, os poemas que não têm algum formato já usado tradicionalmente (sextilha, décima,martelo, beira-mar) constituem exercícios de distensão, colagem ou expansão destes modelos, experimentos feitos dentro desses limites estéticos delimitados.
Também vem do universo da cantoria uma referência fundamental para o lado musical do projeto. Tomando como ponto de partida estilístico as “canções” dos cantadores(subgênero dentro da cantoria de viola, não confundir com o sentido comum que se dá a esse termo na música popular), fui encontrando ou forjando conexões com matéria musical diversa, que de alguma forma esteve presente ao longo de minha formação como músico. Fui construindo e atravessando a ponte imaginária que em mim liga as canções dos cantadores com o brega do Recife, que por um caminho mais torto também conecta-se com o rock por ser filho bastardo da Jovem Guarda. Também a viola, que me levou de volta à guitarra, que tive que reaprender sob intensa influência de música pop africana e ... era pra ser um texto sobre a poesia, então...
Preparando o salto: Se você olhar e não se ver, quebre o espelho. Juntando os pedaços, a liberdade de se recompor como quiser. Canção devedora de Voltando à minha terra, de Severino Feitosa, na irregularidade rítmica do compasso subjugado à inconstância na métrica do verso.
Brisa: A descoberta da relação íntima e secreta que a verdade e a contradição mantêm entre si. Ciranda em quadras e refrão, com uma primeira linha em quatro sílabas bem característica do estilo. Um tanto de hard rock e um dos pontos altos da tuba de Lêo Gervázio no disco.
Ariana: Mais uma “canção”, ao mesmo tempo um martelo com refrão estendido, bem à maneira dos cocos mais extensos de Zé de Teté, cantador de Limoeiro.
Cantando ciranda na beira do mar: Galope à beira mar da cantoria de viola, travestido de “ciranda-rock” e revelando os efeitos de alguma leitura de poesia épica.
A bagaceira: Ex-frevo travestido de brega, abolerado de alta rotação. Auto-biográfico mas com bastante exagero, ainda bem. Na relação entre a letra e suas metamorfoses musicais, uma aplicação prática do que pude aprender na convivência com o poeta Zé Galdino de Ferreiros, que se apropria a cada momento da música que melhor se preste ao contexto, da cantoria para a ciranda, depois para o maracatu, sempre a serviço de seus versos...como não aproveitar a lição?
Canoa furada: Quase-ex-mas-ainda-sendo-frevo autobiográfico.Rir de si como estratégia de sobrevivência. Punk rock com notas de rumba congolesa. Psicodelia em algum ponto da degustação.
Mute: Hendrix e Etiópia. Silêncio, a voz que se foi ...
Um verso preso: Uma estrofe antecede a voz que ensaia o retorno. Na forma, uma décima tradicional e mais nada. Viola de cantoria, elétrica. Baião.
Avante: A retomada, o reencontro com a força propulsora,o empurrão e o movimento.Sextilha, musicalmente devedora de um desafio entre Ivanildo Vila Nova e Manoel Chudu em 1977, gravado em fita cassete que escutei até a exaustão anos a fio. Rock que queria ser baque solto. Kinshasa ao longe.
Qasida: Nada está onde estivera, o que se procura está em canto algum, mas existe... Título levianamente apropriado de um estilo de poesia oral árabe pré-islâmica que tem ou tinha como tema inicial a chegada do poeta a um acampamento recém- abandonado. Martelo agalopado em ritmo ternário emprestado de musica elétrica Tuareg.
Bravura e brilho: Descrição, com pouca fantasia, da primeira infância de meu filho, com andamento do texto construído com apropriações de recursos melódicos e rítmicos da música congolesa.
Dito isso, algum ponto de chegada? O diário agora iniciado segue Avante.
A nosso convite, Siba aceitou fazer um passeio pela poesia e o imaginário do seu elogiado álbum Avante.