Schneider Carpeggiani foi quem me convidou. Para escrever, aqui no suplemento, sobre Wilson Bueno. A partir de texto que ele, Schneider, leu em meu blog. Ave nossa! De cara, topei. E fiquei, nas férias, remoendo a empreitada. Dias, noites e dias. Ave Maria! Por onde começar a contar? Da minha admiração pelo escritor paranaense. Qual ponto, de fato, pontuar? Aonde chegar chegando?
Na minha página na internet, a Ossos do ofídio (marcelinofreire.wordpress.com), falava eu sobre o romance póstumo do Bueno. Um dos melhores lançados no ano passado. Título, a saber: Mano, a noite está velha. Editora: Planeta. Desenredo: um acerto de contas, meio autobiográfico, em que o autor conversa, o tempo todo, com o seu irmão morto.
E o cenário desse livro eu conheço. Lembro-me quando estive na casa de Bueno em Curitiba no ano de 2002, 2003, não sei... Um sobrado azul-celeste. E ele me mostrou a escrivaninha. O quarto por onde entrava o sol na sua linguagem. O lugar em que Bueno derramava o verbo. Eis o que me encanta em sua obra: o apuro da língua além da língua, seus voos, suas viagens sem volta.
À época, em sua sala, ele leu para mim trechos do romance Amar-te a ti nem sei se com carícias. Ave nossa! Belo livro em que ele se apropria de um estilo machadiano, digamos. Tomando a voz do século 19 para si. Esse jeito de se vestir que o Bueno tinha. Lusitano. Isso quando ele não se aventurava em mares nunca dantes mergulhados. Assim, em nossa literatura. Como na feitura do seu, há tempo, já clássico Mar paraguayo. O primeiro de nossos autores a experimentar o portunhol selvagem. Com que classe! Com que ironia! Anárquica.
Bueno não se continha. E eu gosto e cultuo e celebro esse tipo de coragem. De inquietação que ele tinha de sobra. Quando criou, por exemplo, o histórico jornal Nicolau etc. e tal.
Mas, ora. Creio que, quando Schneider me fez o convite, não foi para traçar, aqui, um perfil biográfico. Mas trazer, sobretudo, um testemunho. Uma espécie de homenagem a esse que sempre foi um dos meus heróis de cabeceira.
Então, beleza.
Coloco o Bueno na mesma estante, afetiva, em que está para mim o português Vergílio Ferreira. Autor de Alegria breve – de quem tenho todos os livros. Ou ainda: ao lado da mesma soltura de alma que possui o grande João Gilberto Noll. Bueno – idem Noll – tem a música de que gosto. As sonoridades. As pulsações de pontuação. Salve, salve.
Corte.
Perder o Bueno foi uma infelicidade.
Pausei.
Pensei, lá atrás, que pudesse começar este texto pelo dia 30 de maio de 2010. O dia do espanto. O dia em que meu coração já amanheceu de luto. Profundo. Wilson Bueno faleceu na mesma data. No mesmo domingo que minha mãe.
Fundo.
Calei.
Se eu procurasse por palavras. Que pudessem traduzir dia tão escuro. Um escritor como Bueno não estaria mais ali para me ajudar. Sem contar as circunstâncias da morte do criador de Meu tio Roseno, a cavalo. A tragédia. O crime brutal. Ocorrido ali, na casa que visitei. Azul-celeste. Cenário, repito, que aparece, fúnebre e melancólico, no seu mais recente romance — nas suas, agora, de alguma forma, “memórias póstumas”.
Meu Cristo!
Melhor seria mudar o rumo da prosa. Bueno não gostaria que este meu texto forçasse a penumbra. O terror que é viver. Logo ele, uma das figuras mais engraçadas que conheci. Com quem convivi, algumas vezes, em eventos pelo Brasil.
Recordo-me, saudosamente, de Bueno em uma das festas literárias internacionais de Paraty. Lá, nós dois em um almoço na casa do príncipe Joãozinho de Orleans. A cara, propositalmente, enjoada que o Bueno fazia. Tomando o caldo quente de entrada. A gente ria. As cadeiras no jardim afundavam na areia fofa. Imagine a cena: Bueno, fazendo cara de monarquia e sentindo os pés da cadeira afundando. Inesquecível! Bradava ele a quem quisesse ouvir: “O império está ruindo, o império está ruindo”.
Enfim...
Ainda: depois de Cortázar, foi Wilson Bueno quem me veio trazer outros bestiários. Animais, contos e parágrafos engaiolados, enjaulados. Como não admirar os jardins zoológicos que ele criava? Feras para quem, em obras como Manual de zoofilia, ele dava voz, gozo e ritmo.
Eta danado!
Não. Infelizmente, não fui amigo íntimo de Bueno. Mas em algum momento a nossa natureza se comunicava. Gente que a gente fica feliz que esteja vivendo no nosso mesmo tempo — respirando as nossas mesmas paixões e acontecimentos.
Daí essa ausência.
Este meu texto pequeno. Pouco. Insuficiente. Improvisado. Que nunca dará conta do que eu sinto. Do que eu quero dizer.
Para isto, o(a) leitor(a) deste suplemento terá os livros do Wilson Bueno. Para ler e reler.
E para, com eles, eternamente viver.
Marcelino Freire é autor, entre outros, de Amar é crime, livro de contos recém-publicado pela Edith (visiteedith.com).