Ela sobe a Ébano, eu desço. Calculo: vai cruzar comigo em dez segundos, na esquina da Biblioteca Pública, entre a banca de revistas e o carrinho de pipoca. Tem seus 40 anos, é alta e não parece bonita, mas o dia está nublado, houve chuva e vendaval, a rua foi tomada por jaquetas de couro, blusas de moletom, gorros de lã, golas de pele, galochas, e ela destoa de tudo isso. Vem de calça jeans desbotada, chinelos de dedo e camisa clara, os botões de cima abertos, o decote nu, sem colares, sem brincos, a cabeleira vermelha crepitando, quanto mais venta mais ela se acende, debochando do frio fora de época. Mas não, não é uma mulher bonita.
Oito, sete, seis, cinco, quatro — três segundos antes do nosso encontro, a desconhecida é interceptada por uma senhora baixinha, encasacada, que a faz se curvar para um abraço falso, um beijo social. Pego o começo do diálogo entre as duas. A senhora pergunta:
— Teu marido, como vai?
— Faleceu — responde a outra, quase envergonhada.
A senhora acusa o choque, pula para trás:
— Jesus! Mas quando foi isso?
— Ontem.
Continuo caminhando, não posso parar e simplesmente abordá-las, isso seria ridículo, mórbido, deselegante, eu não as conheço, mas — faleceu ontem? Isso significa que uma dessas mulheres acaba de emergir — com aquele cabelo vermelho! — de sua primeira noite de viuvez, quem sabe passada numa capela distante, entre coroas de perfume enjoativo, cafezinho requentado, bolachas ordinárias, velas elétricas. Sigo adiante, ando mais um pouco, uma dúzia de passos lentos, e não resisto, olho para trás, preciso vê-las. As duas conversam por mais três minutos, se abraçam e se beijam, mas o abraço e o beijo, agora, são calorosos, demorados, elas custam a se soltar. Por fim se despedem, sem choro, cada uma tomando um rumo diferente. A de cabelos vermelhos cruza a Cândido Lopes, mais sozinha que nunca, em direção à vida.
Continuo meu passeio. Alcanço a Rua XV, desvio das ciganas, driblo a vendedora de flores, ignoro a moça obesa fantasiada de Emília, não quero comprar bonecas de pano. Entro na agência bancária, pago minhas contas, checo meu saldo, saco 50 reais e já é hora do almoço. Volto à esquina da Biblioteca, retomo a Cândido, depois a Carlos de Carvalho, e toco para o vegetariano, sempre pensando no homem que faleceu ontem, nos cabelos crepitantes da sua viúva, em seus chinelos, seus dedos bem manicurados, sua unha francesinha, em branco e rosa.
No cruzamento com a Alameda Cabral, uma pausa: sinal aberto para os carros, os pedestres se acumulam no meio-fio. Do outro lado da rua, um casal de idosos se impacienta, tem pressa, pouca felicidade pela frente. Não se falam, mal se notam, mas há, entre eles, alguma comunicação negativa, uma dissintonia perigosa. O velho olha para os automóveis, guarda-chuva na mão direita, à espera de uma oportunidade, uma trégua no tráfego que vem da Praça Osório; a velha olha para o sinal verde, atenta ao estrito cumprimento das regras, bolsa de cobra no antebraço esquerdo, manto de coelho nos ombros. Ele desliza para o asfalto, pisa a faixa de segurança e ensaia uma travessia. Ela tenta impedi-lo, ó o sinal, homem, está aberto, espera. Ele insiste, ela o fisga pela manga do paletó de veludo preto. Ele puxa o braço com ódio, tenta se desvencilhar da esposa, o par se desequilibra. Observando os dois, me distraio do trânsito, o sinal fica vermelho, mas nenhum de nós atravessa a rua, o próprio velho já desistiu de atravessá-la, suas prioridades mudaram.
Sim, ele perde a cabeça. Ergue seu guarda-chuva automático e, com ele, golpeia a esposa pela primeira vez, na altura dos peitos. A mulher se assopra, ferida, mas revida de pronto — aquela agressão pública não é novidade para ela. Estapeia o velho no queixo, mas só o pega de raspão, o agarra pela lapela. Ele permanece impassível, não se mostra ofendido, acho que se arrepende da cena e pensa em fugir, dá outro passo em direção à rua, afunda o pé numa poça d’água e se confunde, o sinal abre novamente, os carros voltam a circular, ele é obrigado a retroceder. A velha aproveita a hesitação do cônjuge e volta a castigá-lo, um direto no nariz, outro na orelha. O homem se enfeza, bate nela mais duas vezes — uma nos rins, outra na barriga — e o guarda-chuva se abre dramaticamente. O agressor o fecha, mas se atrapalha no processo, é censurado por um entregador de água que estaciona por ali a sua bicicleta:
— Vamos parar com isso, meu senhor?
— O teu senhor está no céu.
O velho é grosso, não tem tempo para bater boca com vadios. A velha berra, ataca o inimigo, eu te mato, eu te odeio, todo mundo morre, menos você, menos você, ela chora e mete as unhas na camisa xadrez dele. Um botão se solta, um tufo de pelos brancos vem à tona, registra-se uma quarta guarda-chuvada — nas pernas da mulher —, o sinal torna a fechar. A senhora grita alto, vai chamar a polícia, ameaça correr, atravessa o asfalto depressa, na faixa, mas logo se aquieta, cansa, desanima e volta a caminhar. O velho também cansa, mais de 80 anos, não é brincadeira, e a segue devagar, manso, resignado. Os dois passam por mim já num estado de calma relativa, de torpe rendição, ela dois metros à frente dele, ambos subindo a Cabral em direção à morte, ao apartamento onde criaram seus filhos e onde viverão juntos para sempre. Respiro fundo e vou almoçar.
Na saída do vegetariano, decido fazer a digestão na Boca Maldita. Venço o calçadão, pego a rua da Biblioteca e — lá vem ela, a viúva dos cabelos de fogo. Calculo: vai cruzar comigo em dez segundos, na mesma esquina, entre a banca e o pipoqueiro. Eu subo a Ébano, ela desce. Cinco, quatro, três, dois, um. É alta, não é bonita. 40 anos, calça jeans, camisa clara, aliança no dedo. O tempo virou, o sol saiu, que calor, todo mundo suando, menos ela. Olha só: latinha de coca numa mão e, na outra, um pastel de carne. Um pastel! Especial: daqueles que dão para dois.
Luís Henrique Pellanda é jornalista e autor de O macaco ornamental e Nós passaremos em branco