Vamos combinar: é chato pra burro ler um livro que, do começo ao fim, é um mero exercício de linguagem. Zero de enredo, pois o estilo é o máximo. Tá bom, é moderninho, entendo o argumento de que todas as histórias já foram contadas e que é interessante escrever fugindo às regras comuns da gramática. Mas, ler um bom romance, uma novela baseada nos fundamentos clássicos da narrativa, para este capricorniano de elemento Terra, ainda é a oitava maravilha.

 

Ler, eu vou dizer a vocês, eu leio. Até por obrigação de ofício. Sou jornalista e escritor e tenho que ler até bula de remédio. Que, aliás, adoro. Mas existe uma tendência de que livro, para ser chique, tem que oferecer ao leitor um texto que busca dar nova gravidade à expressão. Afinal, tudo é uma questão estética. Ai, não. É cansativo demais. Respeito, no entanto, os que pensam o contrário. Mas não digo, jamais direi, que um dos prazeres deste mundo – e todos eles me agradam – é ler um tijolo de 300 e tantas páginas que começa do nada e vai para lugar nenhum. Caso contrário, podem me chamar de cafona.

 

No outro dia eu estava conversando sobre esse assunto com meu amigo Xico de Assis, o cantor, que também é um grande leitor. E eu dizia conhecer umas pessoas – contei seis, nos dedos – que têm urticárias às narrativas empolgantes, aquelas que deixam o leitor amarrado até a última linha. Xico me disse que essa tendência de eliminar as tramas dos livros é uma coisa inconscientemente suicida. Por quê? Ora, respondeu-me, as histórias só vão acabar quando acabar a existência humana. Até lá, haverá enredos.

 

Xico: por que a gente é assim? Desculpem, os mais sensíveis, mas eu tenho que dizer: eu adoro um plot. Escuto, meio ressabiado, a teoria das vanguardas, que defendem a tese do esgotamento da ficção. É cult, está na mesma linha dos que defendem o esgotamento da pintura etc e tal. Mas a impressão que me dá é de que livro sem um enredo parece estar ainda num estágio conceitual. Como se o autor estivesse testando o leitor para ver no que aquilo vai dar.

 

Acho que um livro precisa ter bons personagens e enredos. Sei que, assim dizendo, aqueles seis amigos do parágrafo anterior vão se dar conta de um processo alérgico a este pobre rapaz latino-americano sem parentes importantes e vindo do interior. Tampouco comprarão o meu livro mais recente. Pois quando escrevo, o primeiro leitor que eu tenho que agradar sou eu mesmo.

 

Portanto, parem de ler neste ponto aqueles que não acham sérios os escritores que dão importância às tramas. O meu livro tem como título Aqueles livros não me iludem mais. Ele não tem um gênero muito definido, pois é ao mesmo tempo de contos e também uma novela. Cada conto se resolve em si mesmo e se o leitor se der ao trabalho de pinçar um dos textos, vai achar que ele está fechadinho, tudo certo.

 

Mas, se ler o livro do começo ao fim, lá pelo quarto ou quinto relato descobrirá que há uma trama invisível. Uma trama que não foi escrita, mas que você vai compreendendo, pois ela está nas entrelinhas. Como a vida: cada pessoa tem sua história, mas a vida vai tecendo a sua própria trama, oculta, independente, no emaranhado da convivência humana. Uma história que se concretiza com todos os personagens contracenando no dia a dia, com pequenos ou grandes dramas, ou drama nenhum. Mas na leitura geral tem um enredo, sim, com vários plots. Esta vida é uma grande novela. Ora a gente ri. Ora é drama mexicano. Ora é trash.

 

Assim é o livro de contos: uma história que entrecruza na outra, que pressupõe a próxima e forma uma novelinha. Bom para o leitor. Lê um livro e consome dois. É um livro de personagens, ao todo dez. Todos eles com um pé fortíssimo no submundo. Não são necessariamente marginais, mas que estão a um passo da “margem”. Não pretendo, através dos contos, fazer um resgate da vida tal qual ela é. Não é jornalismo, nem é história. É ficção.

 

São contos em que exploro uma linguagem usual, oral, cotidiana. Sempre tento me aproximar da oralidade na prosa, principalmente nos textos em primeira pessoa. Fico buscando uma forma de expressão do personagem que pareça mais genuína. É a importância do texto oral, sacou? Além de parecer mais real, o texto parecido com a fala, parece-me, facilita a comunicação entre o que o autor quer dizer e o que o leitor vai assimilar. Não sei. Talvez seja uma coisa que venha do jornalismo e que eu trago essa estratégia para contar as minhas histórias.

 

Agora, se esse jeito de me expressar em algum momento termina indo para a forma poética e artística, então ótimo. É tudo o que o leitor quer para ficar satisfeito e feliz. Se a história vai ganhando graça e força é porque ela foi planejada assim. É uma questão de estilo da narrativa. Mas eu não fico buscando, até o sofrimento, a perfeição das frases, a posição elegante das palavras. Não perco uma hora de sono buscando dar um novo sentido à palavra. Não fico preocupado com silepses, anáforas, hipérboles e metonímias.

 

O tema do livro é: “livros”. E, aqui, os livros não têm aquela função superlativa e magnífica, educativa e tal. O livro é um mero objeto. Usado, inclusive, como arma de vingança. Não podia ser mais cafona, certo? Mas eu desconfio que vai agradar a amigos, que, como Xico de Assis, acreditam que uma obra de ficção pode brincar consigo mesma: tanto na forma quanto no conteúdo. A história é tão importante quanto o jeito de contá-la. Já diziam os teóricos.

 

Fecho este artigo com as palavras de Xico: ele disse que está desconfiadíssimo de que a ficção que investe mais na forma conquista os literatos, mas vai excluindo cada vez mais os leitores comuns. Leitores que vão achar os livros mais complicados e sem graça. Há de se reconhecer. Xico tem razão.

 

Cícero Belmar é escritor e jornalista. Está lançando Aqueles livros não me iludem mais, pela A Girafa. É autor de romances, biografias, contos e peças de teatro para jovens e crianças.