Flávio Pessoa

 

Terça-feira não é exatamente um dia tão modorrento quanto a segunda-feira, mas também não podemos dizer que é um dia luminoso e completamente cheio de promessas como a sexta ou o sábado. Pois foi exatamente em uma sonolenta terça-feira que o escritor argentino Manuel Puig, então residindo no Rio de Janeiro, resolveu dar o ar da sua graça no Recife. Era 19 de outubro de 1982. A derrota da Argentina para a Inglaterra na Guerra das Malvinas, ocorrida em 14 de junho daquele ano, ainda suscitava debates calorosos entre os anti-imperialistas e os que aplaudiam a intervenção da armada inglesa como um meio de levar ao fim a Junta Militar que governava o país vizinho. Mesmo que os jornais falassem que a palestra de Puig versaria sobre a literatura latino-americana, nós sabíamos que o tema Guerra das Malvinas iria predominar e, por extensão, a situação política da sua pátria. O tempo estava mais para a política do que para a literatura. Para quem tinha 17 anos, cursava o segundo ano científico (torturado quanto ao caminho profissional a tomar), sustentava suas despesas com uma modesta mesada e via o mês chegar ao seu término e, com ele, o dinheiro começar a desaparecer da carteira, ver e ouvir Puig era, de longe, a grande opção da noite.

 

Puig chegava ao Recife sob o signo da sua obra mais conhecida: O beijo da mulher Aranha. Publicado em 1976, este romance só fora traduzido para o português em 1980, dentro do boom editorial que tomou conta do Brasil depois da abertura política. Em dois anos atingira a soma de onze edições e virara um verdadeiro best-seller nacional. A estória de dois homens encarcerados em uma mesma sela — um, por suas atividades subversivas; o outro, sob a acusação de corromper menores do sexo masculino — não só colocava na ordem do dia o passado político recente da América Latina, como sinalizava para o preconceito pequeno-burguês da esquerda latino-americana quando o tema em questão eram as minorias, particularmente o universo homossexual. No caminho do seu sucesso, outros livros de Puig começaram também a ser lançados no Brasil, a exemplo de Boquitas pintadas (1969) e Sangue de amor correspondido (1982).

 

Bem, a palestra de Manuel Puig teve início no horário previsto: sete e meia da noite, no auditório da Livraria Síntese. A Síntese, comandada por Suely Pereira e Murilo Alves, era, nos anos 1980, ao lado da Livro 7, de Tarcísio Pereira, um dos redutos da intelectualidade pernambucana (ou dos que almejavam lá chegar). Para meu espanto, o auditório, que era pequeno, não lotara. Devia estar com 80% dos assentos ocupados. Simpático, falando fluentemente português, aparentando ser muito mais jovem do que a idade que tinha (completaria 50 anos em dezembro), Puig em pouco tempo se fez tão familiar que a impressão que tínhamos era que o conhecíamos há muitos anos. Ele falou da condição do escritor latino-americano, da ditadura argentina, dos desaparecidos, da Guerra das Malvinas (acreditava que a guerra, que fora uma manobra dos militares para prorrogar um regime que perdia cada vez mais apoio popular, iria acelerar o fim da ditadura) e, principalmente, discorrera sob os seus livros, nada obstante a única obra lida pelos presentes (a acreditar pelas perguntas) tinha sido O beijo da mulher Aranha.

 

Das perguntas e das respostas, uma eu nunca esqueci: por que ele escrevera O beijo da mulher Aranha e o que o levara a inserir nesta obra as notas de rodapé? Sua resposta foi que o seu objetivo foi tocar em um tema ainda tabu entre as esquerdas: a homossexualidade. Daí ele colocar em uma mesma cela um revolucionário homofóbico — que via nos homossexuais um bando de alienados e, pecado dos pecados, pessoas que encerravam vícios burgueses que deveriam ser extirpados pela nova sociedade que ele tanto almejava — e um gay que superava a sua triste e dura realidade vendo e sonhando com as estórias dos filmes B americanos. Quanto às notas de rodapé, isso remetia ao seu universo da infância. Nascido e crescido em General Villegas, nos pampas argentinos (só aos 13 anos se mudaria para Buenos Aires), ele, sendo homossexual, sofrera com a falta de informação sobre a sua orientação afetiva. Na sua juventude (nascera em 1932) a medicina se dividia sobre o tema. Uns, defendiam que era uma doença mental; outros, deficiência de testosterona. Assim, ao escrever o seu romance ele pensara em um jovem, também nascido e vivendo no interior da Argentina, que se descobre homossexual. Ao ler o seu livro ele teria as informações mais recentes defendidas tanto pela medicina quanto pela psicanálise sobre o tema. Ele desejava que este jovem hipotético sofresse e se angustiasse menos do que ele sofrera e se angustiara quando se descobriu gay.

 

Finda a palestra, veio a noite de autógrafos. Miséria das misérias: eu não tinha dinheiro para comprar O beijo da mulher Aranha. Na minha carteira tinha somente 10 cruzeiros. O livro custava o dobro. O que fazer? Lembrei-me que a Livro 7 vendia, além de O beijo da mulher Aranha, um outro livro de Puig: Boquitas pintadas, recém-publicado pela Nova Fronteira. Corri para a livraria de Tarciso e adquiri o único volume ainda disponível na estante. Custou-me 9 cruzeiros e 50 centavos. Retornei à Síntese, entrei na fila de autógrafos, e vi Puig, em um misto de português e espanhol, escrever na folha de rosto do meu exemplar: “Para Anco Márcio, com mui gracias por seu interesse em minha obra, Manuel Puig”. Na verdade, este era o primeiro livro que adquirira dele (só conhecia a sua obra de resenhas e de entrevistas que ele próprio dera aos jornais e revistas). Livro que leria dois meses depois, em Bom Conselho, quando entrei de férias do Colégio Contato. Só em 1984, mais particularmente em 29 de agosto, compraria O beijo da mulher Aranha. Seis anos depois, em 22 de julho de 1990, em um modorrento domingo, dia em que completava 25 anos, li, para a minha imensa tristeza, que Puig morrera em Cuernavaca, no México, vítima de uma crise de apendicite. Morte estúpida, como são todas as mortes. Ficaram os seus livros, que revelaram para mim que a literatura argentina não era apenas Jorge Luís Borges e Júlio Cortazar (ou seja, literatura fantástica ou realismo maravilhoso), e a lembrança feliz de uma noite de uma certa terça-feira da minha já distante juventude.

 

Anco Márcio Tenório Vieira é professor da UFPE e autor de Adultérios, biombos e demônios.