Belgrado falou comigo três vezes. A primeira, meu Deus, foi um choque. Um susto tamanho que nem lembro. Ah, não... lembro que ele me cortou os olhos como uma baioneta. Dizem que sérvios são assassinos, pensava em Milošević, nos aviões de guerra estacionados no aeroporto Nikola Tesla, juro que vi francoatiradores, vultos escondidos atrás da fuselagem, sai, sai, olha eles, mas a criança bósnia sucumbira com um único tiro na cabeça, o corpo sereno sobre o asfalto. Eu me tremia por dentro, suava, remexi o casaco, calor terrível que fazia aquele ônibus, carteira ao chão, dinar, euro, meu rosto de medo escancarado a duas senhoras sentadas do lado direito. Queria sair dali, meu Deus, por que Belgrado, por quê?, bem feito, quem mandou, eis que ergo a cabeça sobre o Danúbio pela ponte Branko. Nossa...que azul-indescritível. Desça, o cobrador acena, é aqui o terminal, balançando as mãos para fora. Desnorteado com o ar quente, atravesso o vuco-vuco da Zeleni Venac, tateando a cidade branca no escuro, please I’m looking for Kralja Petra Street, it’s over there, sir, desço, erro, subo, acho, enfim, o interfone do hostel. Mas antes transpor a porta de ferro pesada quer reencontrar a criança. Ela, não, por favor, estava ali, estatelada a meia-escada, horripilantemente doce. Disse algo solene, provavelmente “boa tarde”, em servo-croata, não sei. Também não sei se eram meus olhos de vrana, um “bem-te-vi” soturno que me espreitava no ponto de ônibus do aeroporto, vasculhando minha carcaça, horas antes; a questão é que o garoto sérvio correu, batendo suas asas contra minha tolice. Afiado e desfeito em sua concha pura, foi o primeiro a me desferir picadas e sentidos contra o peito. Não, ele não era o corvo, apesar de o prédio ser um ex-QG de alemães nazistas. A ave de rapina, reclusa e de cara toda ferrada, éramos eu e a minha sombra pesada que insisto em carregar de Henri Clouzots, Sokurovs e Malles. Vrana não é corvo – Mladen, meu fixer sérvio, me corrige, em sua voz pausada, grave, mas leve, meu Deus, como pode? - você precisa parar, é como se ele dissesse de canto de boca. Não dei ouvidos, ou estive muito ocupado para me suspender. Já era tarde, ou sol morto, quer dizer, era manhã e cheguei tarde. Era dia seguinte e estava atrasado 20 anos para a guerra, missão de pinçar, limpar e salvar lembranças-caco, guerra perdida, ou seria atrasado para me salvar? Tinha uma Iugoslávia inteira falecida à minha espera, sentada no consultório. Precisava correr, entrevistar, fotografar, correr, mas por que correr, bobo, se estamos todos presos aqui? Temos os pés fincados neste chão, eu e os prédios do Exército sérvio, os dois prontos para serem reatingidos por mísseis teleguiados da Otan, daqueles que explodem tudo por dentro e salvaguardam o arcabouço como lembrança-fardo. Mladen me guiava pela Avenida Kneza Miloša e pedi para respirar, quem sabe telefonar para minha mãe aliviasse um pouco. Pego o cartão da Telekom Srbija, queria dizer que te amo, que sinto saudade, que sinto o sufoco das sirenes de batedores que soaram por dez segundos, abafando meu choro calado e abrindo passagem para o presidente a bordo do carro oficial. Não queria saber se Boris Tadić era social-democrata, comunista, pró-contra-indiferente-Tito, se a União Europeia irá anexar a Sérvia, se Kosovo é de direito dos católicos-ortodoxos ou dos muçulmanos. Naquela hora, eu apenas queria o olhar de ternura que Mladen lançou sobre mim, ao me ver caído segurando o cabo do orelhão como uma corda. Don’t worry, everything is gonna be alright, ouvi, creio, de longe, mensagem subliminar como paraquedas, encapsulada na vertigem que perdura até hoje. Paz solta, oposta ao terceiro, não, este basta!, me corrói, reacende o medo que paralisa. Ele me dirigiu rochas duras, estalactites que sangram, móveis cheios de ácaro, cheiro de cigarro velho e duas doses de rakija, uma bebida destilada adocicada. Talvez por ser o único estrangeiro naquele bar da Rua Nušićeva, Miloš veio me interrogar. Era um gerente-general, olhar diferente dos outros, inquiridor. Sem cerimônia, já vinha-vindo, que eu fazia em Belgrado?, sou jornalista do Brasil, jornalista de quê?, de site, desconversei, veio fazer o quê?, cobrir o show de Hurts, acabei de chegar da Belgradska Arena, queria desopilar, beber, contei meia-verdade. Há homens da máfia sérvia, me lembrava baixinho dos avisos que recebi, tome meu e-mail, venha trabalhar comigo, e congelei. Queria fazê-lo entender que o voo partia dali a duas horas, I’m so far away from home, sorry, olho de volta para seu rosto e vejo uma cartomante que parecia dizer: “Você vai voltar!”. Trôpego, paguei a conta e desci as escadas correndo pela Rua Knez Mihajlova gelada às quatro da manhã. Tive a impressão de que um pedaço de mim ficou naquele chafariz da Trg Republike, alvejado à queima-roupa. Meu último aviso se vestiu de luz escura e veio ao meu encontro. O vaticínio se fez, que arrepio, no retorno, quando me deparo com Milorad Pavić, minha nova sombra macabra: “Ele viajou milhas e milhas para morrer em seu sonho”.
SOBRE O AUTOR
Rafael Dias é jornalista e mestrando em Comunicação Social