Lembro bem. Era simples escolher uma cerveja nos anos 1990. Os botecos ao redor da universidade vendiam Brahma e Antártica. Kaiser, só em último caso. Mais do que isso, apenas em bares pingados, casas de importados e de amigos. Aliás, foi nessa época que conheci a mexicana Corona. E confesso que eu curtia mais a garrafa translúcida e o status da bandinha de limão do que o próprio líquido, que era do tipo pilsen leve e eu nem fazia ideia. Hoje, eu já não empunho uma long neck assim, desavisadamente. Bebo cerveja com tudo que ela tem dentro, seus humores, dissabores e prazeres.

Quem, afora os egípcios que ganhavam barris de cerveja para construir pirâmides e os caras que fizeram a fusão da Brahma e da Antártica na Ambev, imaginou que a cerveja chegaria aos níveis de consumo e conhecimento de hoje? Já reparou nos maiores supermercados? Existem corredores inteiros dedicados à bebida. Às vezes, nem as adegas fazem páreo. E as gôndolas mais parecem o jogo War. Vê-se Alemanha, Bélgica, Holanda, Japão, Dinamarca, Inglaterra, Escócia, Irlanda, Itália, Estados Unidos, Argentina e México, só para citar algumas nacionalidades. E quando se vai aos rótulos, outro mundo se abre. Tem larger, dark larger, boc, ale, red ale, stout e suas inúmeras subcategorias e subtipos.

Estava eu outro dia no Mercado Público de São José, reduto da baixa boemia recifense e de algum artesanato pernambucano. Fui atrás de uma rede de tear. Reparando de box em box, dei conta do sumiço de outro item tão ou mais popular. As garrafinhas de aguardente. Aquelas cujos nomes e rótulos mais parecem piadas de Juca Chaves e que a gente leva de souvenir aos amigos gringos. Encontrei apenas um e outro exemplar empoeirado. No mercado, ninguém sabia quando o fornecimento voltaria ao normal – se é que volta. Em tom saudosista, o último freguês que me atendeu chegou a dizer que a moda agora seria outra. Distraída com a pechincha da rede, sai dali sem perguntar qual nem por quê. Dias depois, Sandy com uma tulipa de Devassa na mão, num comercial de televisão. E eis que ocorreu uma hipótese: cervejas estão tomando o lugar até de aguardentes.

A cerveja tornou-se onipresente. E não dá mais para subjugar a bebida aos prazeres inferiores, digamos assim. De fazer inveja a muitos títulos da enologia, o livro Cerveja & Filosofia (Tinta Negra Editorial, 2010) promove um elogio à bebida, com uma coletânea de artigos que desce redonda goela abaixo. Um deles me ajudou a entender, muitos anos depois, aquela bandinha de limão na Corona. Trata sobre cerveja, amizade e caráter. Sim, porque a bebida, além da estética, tem ética. Se você tiver 50 reais para gastar em cerveja, comprará uma caixa de cerveja realmente boa ou duas ou três caixas de cerveja barata que não chega à metade do sabor? É uma escolha de Sofia. Sem exagero, a filosofia é tão parte da cerveja quanto a cevada.

Nietzsche considerava que a embriaguez da cerveja liberava o poder, a sensualidade e a criatividade – e ao que tudo indica, o deus grego Dionísio era o seu companheiro imaginário de manguaça filosófica nos pubs de Viena. É fato. A cerveja tem efeitos psicoativos e transforma a percepção de quem bebe. Dá-se um outro estado de consciência.

Charles Baudelaire escreveu, em Paraísos artificiais, que um homem que só bebe água tem um segredo a esconder de seus semelhantes. Talvez isso justifique as amizades de copo. Quantas nasceram ontem à noite, nas mesas de bares, pubs e lojas de conveniência do mundo? Plutarco – não dá para evitar os gregos, quando o assunto é “tomar uma” - dizia que a finalidade da bebida era alimentar e aumentar a amizade. Já abracei, beijei e conjuguei outros pretéritos – nem sempre perfeitos - depois de algumas tulipas. Já declarei amor eterno a um completo desconhecido e pedi paz para o mundo. Já chorei no Omar Khayyam, boteco do tempo da universidade, que homenageava o poeta pinguço. Enfim, já amarguei muitas ressacas de cerveja, até saber que, quando ela entra, a verdade sai.

SOBRE A AUTORA

Ana Braga é jornalista e também atua na área de publicidade.