1. QUER ME VER?
Estava eu num domingo à tarde tomando cerveja na casa do meu amigo João Batista (lembram dele?) quando toca o celular. Eu atendo. Eu sempre atendo. “Quer me ver?”, foi a pergunta do outro lado. Voz de homem. E não era um “quer me ver” docinho. Aquilo era praticamente uma intimação policial. “Quer me ver?” Céus… reconheci a voz. O cara desapareceu há um ano e agora, às 17h30 desse domingo maravilhoso, me liga e, sem nem perguntar se eu estava bem, o que eu andava fazendo, se eu tinha compromisso para logo mais, se eu ainda me lembrava dele, dispara a pergunta: quer me ver?
Eu ainda tentei entabular um papo decente: olha, estou na casa de um amigo, me liga amanhã, tudo bem com você? Mas quem disse que ele me ouvia? Ficava repetindo a pergunta feito um papagaio: “quer me ver?”. Alto lá, as coisas não são bem assim. O cowboy abre a porta, para no meio do saloon, mostra o revólver na cartucheira, olha pra mocinha sentada à sua frente e dispara: quer subir na minha garupa, baby? Onde estamos?
Partindo do princípio de que sujeito é quem pratica a ação, me responda: quem ligou pra quem? Quem estava querendo ver quem? Logo, o sujeito da frase não era eu, mas ele. O correto seria dizer “eu quero te ver”, concordam? Mas não, ele preferiu jogar o abacaxi nas minhas mãos. Se eu fosse encontrá-lo é porque eu queria vê-lo.
Dizem que pretensão e água benta não fazem mal a ninguém, mas a pretensão masculina, muitas vezes, beira o ridículo. Sou até capaz de ver a cena: domingo à tarde, o cara sozinho em casa, festa de encerramento das Olimpíadas, copinho de cerveja na mão, por que não?
Sim, claro! Abriu a agenda e ligou. O que de melhor eu teria para fazer numa tarde linda como aquela do que ir correndo ao seu encontro?
Pois a história não terminou aí. Às 9h da noite, ele ligou de novo.
“Você ainda está na rua? Quer me ver?”. Aí eu desliguei sem nem responder.
Cá entre nós, mesmo se ele tivesse dito “tô morto de saudade, quero te ver” eu não iria. Nossos encontros não foram lá grande coisa, mas pelo menos ele teria passado para a história como alguém mais razoável
2. O JANTAR
Há um ano não nos víamos, não tenho lhe dado brecha ultimamente, mas ontem à tarde, quando ele ligou para o escritório, percebeu que tinha chance.
- O que você vai fazer à noite?
- Nada, venha jantar comigo.
Meia hora antes do combinado, ele tocou a campainha com um pirex na mão.
- Fiz pra você. Torta de camarão.
Eu pus de lado.
- Vamos comer o picadinho que eu fiz. A torta eu como amanhã.
Numa sacola de plástico, trouxe três latinhas de cerveja. Peguei uma garrafa de vinho já aberta.
- Prefiro vinho, você bebe a sua cerveja.
Também trouxe Otelo, um boxer imenso que atravessou a sala e a conversa o tempo todo.
- Você se lembrava dele? Na última vez, ele era um bebezinho, está fazendo um ano.
Depois do jantar, conversamos numa boa, sobre nada. Quando me calei e comecei a bocejar, ele se levantou dizendo:
- Volto daqui a um ano.
- Pode me ligar no Natal, eu lhe disse.
Ele me xingou de filha da puta e foi embora dizendo que me ama e me amará para sempre. Eu fiz o mesmo.
Hoje passei o dia com o celular desligado. Pra ele, às vezes, o Natal é no dia
seguinte.
SOBRE A AUTORA
Ivana Arruda Leite é autora de Falo de mulher e Alameda Santos, entre outros títulos
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- Categoria: Crônica