Hallina Beltrão


Largado no batente do Bar Savoy, bêbado e louvando um vago decadentismo que só o Recife dos anos 1980 permitia, esperava o bacurau para o Engenho do Meio recitando baixinho, só para mim mesmo, o Soneto para Greta Garbo, de Carlos Pena Filho, aquilo me acalmava como uma reza, um mantra, engov lírico contra a angústia e os biliares bueiros internos:

“Entre silêncio e sombra se devora e em longínquas lembranças se consome tão longe que esqueceu o próprio nome e talvez já não sabe por que chora”.

Toda uma Caxangá pela frente. A avenida mais comprida que a vida eterna. Quem manda querer ser poeta e se achar o próprio flâneur do século 19! Agora segure a onda, seu xepeiro, que o pão-com-ovo é tua antilírica na ressaca de amanhã.

Jaci Bezerra e Alberto da Cunha Melo, generosos bardos que me bancavam a cachaça e o ponche, eram os culpados. De um dos dois – a memória carcomida pela maresia como aro de bicicleta não me permite a resposta exata –, ganhei o Livro geral de Carlos Pena Filho. Culpados. Duplamente culpados. Fora aquele Mário Faustino que furtei não me recordo de qual dos dois amigos que me facilitavam o bandejão poético e dionisíaco.

O soneto de Greta Garbo no juízo e o telecoteco dos vendedores de chá e café na madruga. Baticum nas caixinhas de madeira, um jazz dos infernos. Um pastor ao longe, na pracinha do Diario, tentando salvar o Recife da venérea, do excesso de poesia e da pouca-vergonha avulsa que emerge naqueles minutos finais do escuro antes da aurora.

O coco grudado no cimento do Savoy, viajava: aqui pisaram os sapatos azuis do sonetista. Os outros 29 homens sentados não importam, que se danem com seus copos de chopp, seus desejos presos, seus sonhos frustrados. Quem são esses caras diante de Carlos, meu velho?

Naquele tempo todo mundo era poeta na cidade e não havia mal algum nisso. Uns mais, outros menos. Uns conservadores na vida e malditos na linguagem; outros vira-latas de rua e caretas nos poemas. De tudo um pouco, como no batismo daquele famoso prato de iguarias do Buraco de Otília –o item do famoso cardápio que levou o filósofo Jean-Paul Sartre, na sua visita a Pernambuco, a desmanchar todo o seu existencialismo numa febril diarreia à chicotinho.

E esse bacurau que não chega. O soneto de Greta Garbo na ampulheta:

“Perdido o encanto de esperar agora
o antigo deslumbrar que já não cabe
transforma-se em silêncio por que sabe
que o silêncio se oculta e se evapora.”

Se ao menos tivesse um trocado para uma cerveja ou uma cana. Se ao menos tivesse ainda ali por perto, na praça do Sebo, a musa do amendoim, aquela branquinha com feições de Nastassia Kinski. Os velhos poetas babavam por aquela menina. Não era para o meu bico. A tarde havia sido linda. Pedro Américo, que dizia ser melhor sebista do que ser besta, sacou um poema concreto. Os artistas Paulo Bruscky e Daniel Santiago mandaram sangue de tinta nas paredes e outras invenções que os meninos espanhóis de La Fura Dels Baus viriam a fazer quase 20 anos depois.

E ainda dizem que não acontecia nada no Recife dos anos 1980!

Não acontecia comigo naquele “liseu” dos infernos. Tudo parado. Nenhum cristão conhecido para pagar uma birita. Nada de bacurau, só Pena Filho agoniando o juízo. E uma vida eterna e caxanguística pela frente. Só me restava a companhia de Greta Garbo, que também se esquivava, no seu enjoado i want to be alone, esperneando dentro do poema de Pena Filho como caranguejos que borbulham no mangue.

Nem Greta Garbo esperou o bacurau comigo, ignorando a própria decadência bem comportada da qual falou o seu fã sonetista.

“Esquiva e só como convém a um dia
despregado do tempo, esconde a tua face
que já foi sol e agora é cinza fria”.

Será que já abriu o Beco da Fome, ali na 7 de Setembro, quem sabe aquela espelunca que faz “pindura” pros poetas independentes, quem sabe? Tudo. Menos enfrentar agora aquele pão-com-ovo da Casa do Estudante.

Socorro, Greta Garbo, salta deste soneto  miserável, e faz alguma coisa por quem deseja qualquer esmola de afeto, um afago, o último trago, um bolero, o cafuné de um travesti ali da Casa da Cultura, um beijo da mais revoltada das fêmeas, as vadiagens de Perna Longa, aquela puta linda e grávida do Aritana, sim, aquela que adora fumar um e ouvir Sade comigo, cadê, larga esse papo-aranha de ficar solita, pula da armadura destes 14 versos e sente o cheiro dos bueiros do meu inferno predileto, bem-vinda ao Hellcife:

“Mas vê nascer da sombra outra alegria
como se o olhar magoado contemplasse
o mundo em que viveu, mas que não via.”