Sempre senti uma imensa solidão todas as vezes que entrei em um aeroporto e olhei para o neon vermelho da cafeteria Palheta. O sentimento, na verdade, não morava somente em mim: ele era compartilhado com aquelas letras um dia fluorescentes, com o tom meio cansado que há anos está pedindo para ir embora, naquela luz triste que pouco ilumina a si mesma (mas é mantida ali como algo que deve sugerir emoção e felicidade).

E tem aquela comida do balcão. A comida que vai ser comprada por alguém que acabou de dizer, mesmo sabendo que era mentira, “Eu telefono quando chegar”, “Eu tentei”, “Eu vou voltar”.

Por covardia e certa inabilidade de lidar com as coisas que machucam, evito me aproximar daqueles balcões. Aeroportos me consomem. Não consigo não observar as pessoas tão cansadas da sala de espera, as pessoas ansiosas que correm para fazer fila quando o voo nem sequer começou a ser chamado, as pessoas que tomam café, a mesinha suja, desejando algo que não sabem precisar. Elas estão, geralmente, sozinhas (como, geralmente, também estou). Já me aproximei algumas vezes do balcão e das letras vermelhas, sempre me certificando de que a fila para comprar a comida estava pequena (como aquela fila é triste). Mesmo assim, a proximidade com as xícaras deixadas com um pouco de café, a proximidade com o vermelho sem luz que emana do neon, já sinto o coração começando a partir.

É claro que algumas vezes aquelas letras iluminadas a conta-gotas pouco me afetaram. Estava ouvindo uma música boa (Bowie cantando para o filho, John para Yoko, Gal para alguém que não soube levá-la para a cama), estava ao lado de um amor, estava indo com a certeza de que logo pisaria na areia da praia, ou que em cerca de 2h37 eu abraçaria uma pessoa querida.

Mas, ao contrário, em alguns momentos aquele neon que não cumpre a promessa de alguma felicidade quase me matou.

Não importava se eu tivesse cortado o cabelo um dia antes, comprado uma revista, se estivesse finalmente satisfeita com a mala (desta vez, sem a sensação de que algo imprescindível tinha ficado para trás). Não fazia diferença se minha contas estivessem pagas e se eu tivesse finalmente conseguido visitar a minha avó Rosa no fim de semana. 

Eu simplesmente não podia encarar aquele neon falsamente feliz de frente: parecia que aquela cor fantasma me dizia que eu pegaria aquele voo e nunca mais veria ninguém que eu amava ou que eu amei. Não era medo de o avião cair ou explodir no ar. Pior, muito pior, é não saber se aqueles que são seu chão, parede, seu teto e suas janelas poderão continuar a tarefa nem sempre simples de cuidar de você. Ou se você consegue dar conta da tarefa de continuar a ser o chão, a parede, o teto e a janela de alguém.

Essa sensação chega no momento em que tiro a mala do táxi, quando entro na sala de embarque. Mas ela é especialmente detonada no momento em que o nome vermelho entra no meu campo de visão. Porque a sala de embarque onde está a cafeteria Palheta tem esse poder: ela pode ser a ante-sala da recontextualização de sua existência. E, mesmo com a avó beijada e as contas OK, você não sabe se está preparado para recontextualizá-la ou se quer somente terminar de pagar o sofá branco, se quer ir naquela festa dançar com a lata de cerveja meio quente na mão.

Você está mais uma vez em frente aos insones, aos apressados, aos esperançosos, às xícaras sujas, mais uma vez naquela sala pensando que é muito sortudo porque pegou a cadeira do corredor, que vai economizar minutos preciosos, está se sentindo muito solitário porque bem na sua frente o casal bronzeado volta para casa vestindo camisetas de algodão com um solzinho desenhado.

Você se sente meio culpado e até um pouco otário, afinal o mundo está ferrado, a água está acabando e a música pop enfrenta sérios problemas. Enquanto isso, seu coração vai esmaecendo somente por causa da cor de uma luz.

Você liga o botão PRESTAR ATENÇÃO e tenta fingir que não está muito cansado das músicas que carrega consigo, tenta superar os avisos de wi-fi, tenta se sentir muito bem-sucedido porque está viajando a trabalho ou vai apresentar um texto para cumprir o protocolo do calendário acadêmico.

Você está até conseguindo não observar a fila e a luz, mas é atraído por alguém ali parado, com a xícara de café olhando para nada. É alguém que acaba de dizer, sabendo que a recontextualização é inevitável, “Eu telefono quando chegar”. Alguém que agora se sente ridículo comprando aquela água cara e que disse, o bilhete na mão, “Eu tentei”. Alguém que não sabe mais o que fazer de si, mas mesmo assim, meio apagado, não fluorescente e pedindo para ir embora, conseguiu garantir, sabendo que era mentira, “Eu vou voltar”.


SOBRE A AUTORA
Fabiana Moraes é jornalista e autora do livro-reportagem Os sertões, lançado pela Cepe