Eu não queria dedicar uma crônica toda a Léo, Leonice Ferreira da Silva (1931-2023), minha esposa, com quem vivi de 1960, quando casamos, até sua morte, este ano de 2023. Vivemos, pois, 63 anos. Bodas de diamante? Não queria dedicar uma crônica inteira, nem meia crônica, porque havia entre nós um pacto: casamento era coisa entre nós, não coisa pública. Por isso nunca usei estas linhas para comentar, por exemplo, um livro que ela escreveu, considerado excelente, Primeira Igreja Batista do Recife/episódios de sua história (Comunigraf, 2003). E outros traços brilhantes de sua biografia. Ocorre que seu falecimento me deixou nu, apagou todos os outros acontecimentos, quando pretendia inicialmente falar sobre retrato, os diversos tipos de retratos e a influência da fotografia e até do retrato falado, tão usado hoje para pegar bandidos. E também não pretendia obrigar o leitor a ter que ler toda a matéria para descobrir a razão daquela foto servindo de ilustração, batida por celular, no curto espaço de um clique, diferente dos 16 anos que Leonardo da Vinci levou para pintar a Mona Lisa.
A descoberta da fotografia afetou a pintura desde o começo. O atelier, obra-prima de Courbet, pintado em 1854-55, traz como destaque, bem no centro da pintura, um nu, como diz a coleção Gênios da Pintura, “decalcado” de uma fotografia (no canto direito, retrato de Baudelaire, que não é o mesmo pintado em 1848).
Atualmente, digamos assim, Picasso, nosso contemporâneo, que em 1906 botou Gertrude Stein para pousar 80 vezes, fez after a photograph o bico de pena Seven Dancers, 62,2 x 50 cm, 1919, e em 1923 o óleo Paulo num burro, 100 x 81 cm.
O suíço-italiano Alberto Giacometti, 1901-1966, resolveu pintar o retrato do amigo escritor americano James Lord e demorou tanto, que deu para o americano escrever um livro encantador: Um retrato por Giacometti. Cada pose virou um capítulo ilustrado pelo estado em que o quadro ia ficando. A cada pose, surgia um assunto que o escritor relatava no capítulo correspondente. Num deles, por exemplo, James Lord perguntou a Giacometti se havia alguma diferença entre ele e um japonês, pois o pintor era grande amigo de um oriental. Giacometti disse que não havia diferença e chegavam a brigar pela mesma mulher e tudo mais.
Porém, lembrou de uma vez em que estava pintando o retrato do japonês e entrou Jean Genet, que morava na casa do pintor, sem falar com ninguém, como era seu costume, e foi direto para o quarto. Giacometti olhou para ele e pensou: “o pau hoje foi feio”. Porque Jean Genet frequentemente brigava na rua. A cara dele estava disforme e vermelha. Acabou a pose e Jean Genet apareceu: absolutamente normal. Aí Giacometti compreendeu que, de tão imbuído das feições e cor do japonês, viu Jean Genet como orientais viram os europeus pela primeira vez.
Voltando às fotos, eu mesmo me recusava a pintar retrato por fotografia. Mas aos poucos comecei a somente acreditar em retrato tirado por máquina. Nessa foto de Léo, tirada de celular, transferi a responsabilidade da fidelidade à máquina. Essa é, sim, Léo, mesmo a foto embaçada. Ela era de 1931 e eu 1932.