Biblioteca Publica Valentine

- “Tu não é ladrão de livros não, né?” Não entendo a pergunta. Poliana dá uma risada. Fala que quando começou a trabalhar com obras raras morria de medo de um Laéssio aparecer. Demoro para lembrar da figura. Laéssio ficou conhecido nos jornais como “o maior ladrão de livros do país”, roubava obras raras, ganhou filme e tudo. Poliana me conta a história, sorrindo. Apesar do receio, diz, nunca tentaram tirar nada da biblioteca — só teve um caso, recente, quando um homem tentou roubar, não um livro, mas a arma de um segurança. Ela sugere que, se eu for rodar pela Biblioteca, me identifique, o susto ainda remanesce pelos corredores. Tomo nota.

Antes deste texto, nunca havia visitado a Biblioteca Pública de Pernambuco, que fica bem no Centro de Recife. Quando entrei, esperava qualquer coisa diferente. Minha imaginação tinha me levado a uma espécie de catedral antiga, com fileiras enormes, infinitas de livros espalhados por estantes amadeiradas que alçariam a sei lá onde. São os filmes.

A fronte do lugar leva a outra história, outra proposta: logo na entrada uma obra de cerâmica esmaltada que serve de símbolo para a Biblioteca, assinada pelo artista plástico Francisco Brennand (1927-2019). Logo atrás, de arquitetura modernista, o edifício se une com o mosaico de Brennand. Dentro, o espaço é simples. Um salão amplo e alto, com piso e pilastras de mármore; pinturas em azulejo português e homenagens à Revolução Pernambucana de 1817, aqui e alí; um ou dois quadros e uma cruz na parede. Uma escada à direita da entrada leva aos setores administrativos, no primeiro andar. Depois, também à direita, um dos acervos aberto ao grande público, onde se pode consultar e pedir obras emprestadas. Há outros, como o acervo de braile, que inclusive está completando 50 anos. Nesse, não cheguei a entrar, parecia estar fechado no dia.

Poliana é a chefe da seção de coleções especiais, é quem me dá a maior parte das informações sobre a Biblioteca. Depois de contar sobre Laéssio, me conduz pelas exposições que ela própria organiza na sua sala, com livros antigos, geralmente relacionados com alguma efeméride recente. Agora em agosto, no centenário de Rubem Franca (especialista na obra de Camões), ela deixou exposto livros antigos do escritor e também algumas edições — das muitas e muitas que eles têm por lá — d’Os lusíadas. Quem mais visita essas exposições são os jovens em excursão na Biblioteca (que fica bem ao lado de uma escola). Para eles, tem o acervo infanto-juvenil, destinado aos menores de 14 anos, com mais de 20 mil obras.

Enfim, o acervo dos pesquisadores, que toda semana recebe visitas e exige hora marcada, é o lugar das obras raras, manuscritos, iconografia, mapoteca e “coleção pernambucana”. Esta última é de autores pernambucanos que escrevem sobre Pernambuco. A esperança é que os autores que se encaixam no perfil doem 3 volumes dos seus livros para a coleção, assim que saem no mercado. Nem sempre acontece.

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No meio da conversa com Poliana, ela me explica que os livros raros não são necessariamente livros antigos. Há também aqueles que têm poucas tiragens, ou que tiveram o estoque removido por alguma razão. A Biblioteca promovendo encontros: ao lado de, digamos, Aniki bobo — livro raro de Aloísio Magalhães com João Cabral de Melo Neto —, poderia estar a biografia de Roberto Carlos — escrita por César Araujo, que teve suas cópias retiradas das livrarias por conta de um processo que o cantor ganhou na justiça.

Do Aniki bobo eles não têm o original. O livro fez parte da coleção do Gráfico Amador, uma editora experimental fundada na década de 1950 no Recife, por um grupo pequeno de jovens intelectuais, que contou, por exemplo, com Aloísio Magalhães. Teve participação de gente como Ariano Suassuna e João Cabral de Melo Neto e também chegou a publicar Drummond, com O amor natural. Diz-se que cada lançamento acabava se tornando um acontecimento cultural no Recife. O grupo esteve na origem da moderna tipografia brasileira, influenciou todo um campo do design gráfico ainda nos seus primórdios. Por várias razões, a experiência foi breve, durou menos de 7 anos. A Biblioteca recuperou há alguns anos parte da coleção, todas artesanais, com tiragem pequena e um esmero gráfico. Poliana me mostra uma das edições do Gráfico que encontrou agora, há 1 semana, num acervo de livros ainda intocados da Biblioteca, de onde surge, vez ou outra, uma novidade. 

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A Biblioteca já tem mais de 170 anos, foi inaugurada no século XIX. Em todo esse tempo já mudou de lugar algumas vezes, até chegar ao prédio atual, em 1975. Até o ano passado (2022), era oficialmente a “Biblioteca Pública Estadual Presidente Castello Branco”. Hoje, é chamada de “Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco”. O livro mais antigo de todos que achei foi um manual de penitências e confissões, de 1560, restaurado pela Fundação Joaquim Nabuco, FUNDAJ. Me contaram também de uma edição original do primeiro livro de imagens de toda a América Latina, o Brasil pitoresco. No total, a Biblioteca tem mais de 280 mil livros e 300 mil periódicos. Em perspectiva: são centenas de milhares de livros disponíveis de forma gratuita, para uma média de 300 pessoas que passam por lá diariamente, entre pesquisadores e curiosos de todos os estados.

À parte livros e periódicos, há também os calendários, cartões postais, listas telefônicas. Poliana diz que lutou pelas listas, porque ninguém as valorizava. Fez o que pôde, conseguiu juntar um monte com o tempo e a teimosia. Abre uma, para me provar como antigamente os números telefônicos só possuíam 4 dígitos. Olho — verdade. As propagandas chamam atenção, uma delas vem assim: ...trata-se de uma bebida que age como agente medicamentoso de Real Valor. As altas propriedades therapeuticas do GUARANA fazem verdadeiros prodigios no organismo humano. O rejuvenescimento completo do intestino, o augmento consideravel da actividade cerebral e a maior tonicidade de toda a rede nervosa, são virtudes excelsas dessa excellente bebida. Fiquei curioso, fui atrás. Parece que a bebida deixou de ser fabricada em 1972, e recentemente voltou ao mercado — infelizmente, com uma nova fórmula.

Antes de terminar a visita, dou uma última passada pelo acervo principal da Biblioteca. Olho em volta, alguns leitores, idades várias. Lembro de Laéssio. Um dos livros que o acusaram de roubar foi o Sermões do Padre Antônio Vieira. Numa parte, Vieira diz assim: “nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis.” A Biblioteca deixa um pouco desse sentimento, no mesclar de João Cabral com Roberto Carlos, tudo livre para quem queira — tem algo de bem democrático, deixando de lado esse papo de ladrões e reis.

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